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F*cking Future: uma marcha contra corpos esvaziados
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A Agenda Porto conversou com Marco da Silva Ferreira dias antes da estreia nacional do seu mais recente espetáculo
F*cking Future: uma marcha contra corpos esvaziados

Como qualquer criação sobre o futuro, a nova peça de Marco da Silva Ferreira olha para o presente. E num contexto internacional de crescente investimento bélico, o bailarino e coreógrafo quis apropriar-se dos códigos desse universo para descobrir os corpos deste tempo. Criou “um coletivo que deambula entre um sistema de militarização, por um lado, e de militância, por outro”, à procura de elementos que “permitam fazer uma mudança”.  

“Estratégia, missão, coletivo, direção, voz, coral” são palavras-chave da busca. “Ao construir um léxico” nos três anos de produção, o autor natural de Santa Maria da Feira confirmou que “o afeto é um poder”, pelo que levanta uma hipótese: “se os discursos de ódio acontecem quando nos afastamos do outro e ele [o outro] se torna um estranho, provocar a proximidade e a intimidade é, se calhar, desbloquear esses discursos”.  


A dança pode ajudar, diz, graças ao seu “poder de trazer o corpo carnal, o corpo físico, outra vez para o presente” e de o retirar “das tecnologias que nos fazem esquecer uma certa presença humana nas relações”. Uma parte da tal força do afeto estará, portanto, no regresso “ao contacto direto”, uma “necessidade” que o criador queria reivindicar. E durante o processo de trabalho debateu-se sobre que tipo de objeto teria relevância para capturar o nosso olhar durante uma hora: “o que reforça o código ou o que o antagoniza?”.   


A opção foi colocar-nos numa fricção entre “um corpo rijo, firme, robótico, mecânico, que vem todo destes universos das forças armadas, da organização, da tecnificação, dos códigos do poder” e “uma resistência que é uma marcha longa, uma maratona, mas onde se vivem sensibilidades, texturas, erotismo… que rompem esses códigos”. 


Mas, no fundo, a que é que se resiste em F*cking Future? “Ao abafamento de identidades”, responde o coreógrafo, pelo fim das “pessoas esvaziadas, as pessoas-objeto, que são invólucro e que não existem, uma massa com uma forma humana mas desidentificada, com a voz silenciada”. Resiste-se, portanto, “a processos de silenciamento, de invisibilidade, e reforça-se a necessidade de humanidade, de identidade, de caráter, de relação interpessoal”. Em suma, aponta-se para um mundo “em que os afetos existem, em que as ideias existem.”  

F*cking Future: uma marcha contra corpos esvaziados

F*cking Future ©João Octávio Peixoto

Uma esperança que nos arrasta para o sonho 


Para levar a cabo a missão, surge em palco um exército queer formado por oito bailarinos, entre os quais está Marco da Silva Ferreira, que enquadra a escolha: “é um lugar onde eu me incluo e por onde as pessoas que me rodeiam e as danças que eu faço deambulam muito”. O artista defende que a dança, com a sua dualidade – “por um lado, muito física, muito do treino, da prática, da resistência, e, por outro, da sensibilidade” –, pode ser uma “ferramenta importantíssima” se usada “como uma lupa”. Algo que ele fez para questionar o presente da própria dança e sua influência nele. “O que é que os corpos que dançam querem reclamar? Que tipo de corpos é que eu tenho à minha volta e que fantasmas me acompanham enquanto autor?”, perguntou-se.  

F*cking Future: uma marcha contra corpos esvaziados

F*cking Future ©João Octávio Peixoto

O bailarino de 39 anos refere à Agenda Porto que nesse tal lugar “ainda pode ser um problema os rapazes dançarem e as raparigas não”. Padrões que “que nos impõem sensibilidades específicas e fazem parte de um sistema patriarcal que tende a conduzir os corpos de uma outra maneira”. Fazendo da lupa espelho, admite não conseguir fugir do facto de ter sido uma criança que foi fruto desta pressão”, e a quem “só muito tarde a dança veio”. 


A certa altura da peça, o exército transformado em coro faz um apelo: “you've got to keep on dreaming”. O grupo “canta para convencer, também”, comenta Silva Ferreira a sorrir. Como se nos quisesse pôr também a nós a olhar para  dentro e a entender que, “sonhando, as coisas podem acontecer”. Um apelo que “é um último reduto”, diz, alertando que ao falar em sonho não se refere apenas a aspirações, mas a toda a dimensão onírica em que “o desejo se cruza com o medo”. Para nos lembrar “que o mistério faz parte da vida e que há uma parte que fica sempre por ser respondida”.  


Ainda que não feche interpretações, Marco da Silva Ferreira admite que nos quer arrastar. Por isso, e para “ter mais gente próxima”, pensou F*cking Future não para uma, mas para quatro frentes de palco. “Ter os bailarinos mais perto dá [ao público] acesso a partes do olhar, da transpiração, do corpo e da linguagem que, ao longe, não existem”. E ao não haver fundo, a plateia oposta passa também a ser “uma paisagem” com dimensão cenográfica, porque reparamos se os espectadores do outro lado se mexem, riem, olham de determinada forma, comportamentos que os “torna parte da cena”. “Cria-se uma relação entre a bolha artística da coreografia e o concreto de estares a ver outras caras a verem aquilo”, indica o autor, que quis mostrar assim “uma justaposição entre o real e a fantasia”. 


Passos urgentes e incertos num palco quadrifrontal  


À medida que a peça avança, o exército “começa a ser intimidante” e vai-se “aproximando progressivamente das plateias”, com movimentos que foram montados “com a consciência de que não havia uma direção principal”. “Não há um olhar, não há uma frente, mas existe um ponto de direção e um ponto de fuga”, que acrescenta imprevisibilidade a “um coletivo que está à procura para onde vai também”, cercado a 360 graus pelo público. 

A pairar está também um ambiente sonoro que o coreógrafo define como o “nono bailarino do espetáculo”, da responsabilidade de Rui Lima e Sérgio Martins. Desde o início, há uma espécie de metrónomo que vai paulatinamente acelerando, desde as 60 batidas por minuto até às 240. E mesmo quando os dançarinos abrandam o ritmo, há de fundo “uma rampa de aceleração, de urgência”. As “estéticas mais abstratas” dos primeiros minutos vão-se “complexificando” a partir de “uma cadência, de um pulso, de uma marcha”, detalha o criador. 


Pelo caminho somos levados para uma “zona mais de clubbing” (a anteceder o referido salto para o onírico), ecossistema em que Silva Ferreira vê paralelos com o militar.  Começa por relembrar que “a cultura techno ganhou muita força logo a seguir à Segunda Guerra Mundial” graças a “uma data de sistemas de sintetizadores e de amplificadores de sinal que foram integrados na construção de música”, antes de comparar dinâmicas: “desde cedo que foi uma cultura de dança-resistência, de marcha, com o corpo levado ao extremo por longas horas, num exercício físico intenso, quase militar”.  


Também no contexto das raves encontrou relação. “São zonas-bolha da sociedade, zonas temporariamente fora da realidade – como um contexto de treino militar –, onde “as regras da sociedade não se aplicam”. O coreógrafo vê até um espírito de “missão” nesse tipo de festas, “em que se montam e desmontam estrategicamente sistemas de sons” para encontros efémeros, além de uma conexão visual “nas botas, nas roupas, na estética” que acabou por ser integrada de forma subversivo”. E de aí parte também para a autocrítica, questionando o porquê de “estes códigos de poder” despertarem “um certo desejo”: porque é que “não foram afastados e são integrados”?  


Nos últimos anos, este é o primeiro espectáculo de Marco da Silva Ferreira a não fazer a estreia mundial no Rivoli (estreou em setembro, na Bienal de Dança de Lyon). Ainda assim, indica que a apresentação no Teatro Municipal do Porto – a 4, 5 e 6 de dezembro – terá o “mesmo carinho especial” das anteriores, mas com uma vantagem: a sua tropa chegará “já completamente sólida e musculada”.  

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F*cking Future ©João Octávio Peixoto

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