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O 11.º Queer Porto — Festival Internacional de Cinema Queer, corpo autónomo do Queer Lisboa, arranca já no dia 4 de novembro. A edição deste ano é marcada pela perda de Daniel Pinheiro, um rosto sempre familiar na cena cultural portuense e uma presença desde a primeira edição do Queer Porto. Falámos com João Ferreira, diretor artístico do festival, sobre os lugares de onde a edição deste ano vem.
Agenda Porto: Não é possível falar deste Queer Porto sem falar de uma perda para o Queer, e para o Porto.
João Ferreira: Perdermos o Daniel, no início do ano, foi um choque enorme para todos nós, de uma forma muito pessoal. Foi muito claro desde o início que tínhamos de fazer alguma coisa para além de o evocar nas noites de abertura do festival. Ficámos alguns meses a pensar nisto, porque o Daniel entra pela primeira vez no Queer Porto como realizador, ele tem uma carreira muito rica e transdisciplinar, trabalhou em muitas áreas. A primeira ideia era tentar encontrar uma forma de demonstrar isso, mas acabámos por chegar à ideia de mostrar aquilo que ele fazia connosco, no festival, que era fazer programação. Esta via acabou por não ser muito difícil, porque todos nós nos lembrávamos dos filmes com que ele mais tinha ficado entusiasmado, das conversas que tínhamos tido com ele sobre estes filmes. É um programa relativamente pequeno, mas que sentimos que representa o Daniel enquanto programador, enquanto alguém que amava o cinema e gostava de fazer esse trabalho aqui.

João Ferreira © Charles Pietri
AP: Portanto há uma memória vossa com o Daniel associada a cada filme escolhido.
JF: Completamente. E com isto, quisemos também dar um carácter mais íntimo à homenagem, mostrar aquele lado agregador que o Daniel tinha. Por isso ,também convidámos pessoas do círculo íntimo dele para fazer a apresentação de cada filme. Não fazia sentido sermos apenas nós, do Queer Porto; seria, porventura, um pouco fechado, um pouco redundante. Assim, a ideia é confrontar este olhar do Daniel com as pessoas da vida dele, e que não estão no festival.

Daniel Pinheiro © DR
AP: Esta edição tem a novidade que é a elevação do programa "Resistência Queer" a secção. Isto é um sinal dos tempos?
JF: Exactamente. Quando o "Resistência Queer" surge como programa no ano passado vem de uma preocupação política e social nossa, com filmes que olhavam para o genocídio em Gaza, a guerra na Ucrânia, e o crescimento das extremas-direitas na Europa e nos Estados Unidos. Tinha até então havido uma progressão das mentalidades em relação às comunidades queer — e de repente apercebemo-nos de que nada disto está garantido. Este ano, o programa apresenta um cenário pessimista para o futuro — é triste dizer isto, mas na edição de 2026 vamos voltar a pensar neste programa como secção do festival. Mas nestes filmes vê-se, também, um lado muito bonito de resistência e de luta, na criação de utopias e num imaginar de futuros melhores.

Duas Vezes João Liberada, da realizadora Paula Tomás Marques — ler aqui a entrevista com a realizadora na reportagem da Agenda Porto sobre novos cineastas portuenses
AP: O filme de abertura é de uma realizadora portuense, a Paula Tomás Marques. Queres falar-nos um pouco desta escolha?
JF: Duas Vezes João Liberada é um filme que tive oportunidade de ver em estreia mundial em Berlim, em fevereiro deste ano. Já conhecia o trabalho da Paula em curtas-metragens, mas este foi um filme totalmente surpreendente para todos nós. Pelo lado ativista, ao trazer pessoas trans para a produção, à frente e atrás das câmaras. A Paula Tomás Marques tem sido fundamental nesse trabalho no panorama nacional. Depois, pelo lado de resgate histórico, que ela já tinha trabalhado nalgumas curtas, uma ideia de releitura da história, e de fazer justiça a figuras que foram de alguma forma adulteradas ou apagadas na sua identidade. E, por fim, é um filme que foi feito com quase nada em termos de financiamento, e é um verdadeiro milagre aquilo que vemos — conseguir fazer uma obra tão coesa, com qualidade estética e técnica. Este filme já foi apresentado em Lisboa, mas achamos que faz todo o sentido — e tem todo o mérito — ter a sua primeira apresentação no Porto como filme de abertura.
AP: O Queer fez uma década no Porto recentemente. O que é que para ti o distingue do Queer Lisboa?
JF: Na altura, foi o Paulo Cunha e Silva quem nos incentivou a fazer o Queer Porto, e ele nasceu logo tendo lugar em vários espaços — ao contrário de Lisboa, em que estamos circunscritos ao Cinema São Jorge e à Cinemateca. Então, o Queer Porto acaba por nascer com uma ideia mais transdisciplinar, também como forma de trazer as diferentes comunidades artísticas da cidade para o festival.
AP: Esse era um modelo mais exigente.
JF: Um modelo mais exigente, e mais caro a nível de organização. Com o tempo, fomos tentando manter essas ideias, mas circunscrevendo-o um pouco mais ao cinema. Ou seja: com os filmes que escolhemos, propostas diferentes daquelas que apresentamos em Lisboa, tentamos sempre manter esse carácter transdisciplinar que possa chamar diferentes pessoas. Mas que, também, vão ao encontro daquilo que são os diferentes públicos das salas. Pensamos sempre no que faz sentido para o público da Casa Comum, do Batalha, ou do Passos Manuel. No fundo, sinto sempre que estas evoluções são orgânicas — não dependem tanto de nós, o nosso trabalho é muito mais o de observar o que as pessoas estão a fazer e a viver.

O Queer Porto vai ter a sua festa de abertura no Bar of Soap, e festa de encerramento no Passos Manuel
AP: Agora queria propor-te um exercício de que nenhum diretor artístico gosta, que seria o de dares três sugestões no programa.
JF: É verdade, isso é sempre difícil!
JF: Há um filme que eu acho que vai chamar muita gente, que é o Pillion do Harry Lighton. Estreou recentemente no festival de cinema do BFI, em Londres, e que também passámos no Queer Lisboa. É um filme de que eu gosto particularmente e é sobre o tema BDSM, sobre relações de poder e de dominação.
Este é um tema muito interessante porque pode ser extrapolado para outras áreas da nossa vida, até mesmo a política — porque, no fundo, lida com a ideia de hierarquização. E este filme entra neste tema de uma forma bastante subversiva, no sentido em que explora de que forma o lado mais submisso pode ter poder.
Há também um filme de que eu gosto muito, já fora da competição, que é o Cabo Negro, do Abdellah Taïa. É um realizador que aprecio muito, já programámos algumas obras dele.
É um realizador muito despojado, que gosta de criar um ambiente para contar uma história de uma forma muito direta. Ele fala muito sobre a juventude, em particular a marroquina, uma vez que é a origem dele, embora esteja radicado em França. E isso é uma coisa que valorizamos, um olhar que vem de dentro, não de fora.
Por fim, queria destacar um documentário, que integra a secção "Resistência Queer", que é o In Hell With Ivo, da Kristina Nikolova.
É um filme que se debruça sobre um tema que me é bastante caro, que é a saúde mental, mas misturando também aqui um lado político. Segue o performer Ivo Dimchev, que é búlgaro, mas atinge alguma notoriedade fora do país, nomeadamente nos Estados Unidos da América. Ele é um artista que lida com questões políticas, mesmo no seio da família, que é de extrema-direita. Mas também confronta fantasmas relacionados com a depressão. Achámos que era um olhar importante porque não traz apenas leituras, mas também soluções.
AP: Em jeito de fecho, o que dirias que alguém que nunca foi a uma sessão do Queer Porto pode esperar?
JF: Há uma coisa a que eu já assisti centenas, senão milhares de vezes, que é as pessoas ficarem absolutamente surpreendidas com se sentirem representadas. Julgo que, para quem não costuma ir, há um receio de não se reverem naquilo que estão a ver, mas estes filmes falam para todos, porque tratam dos temas que são mais essenciais à condição humana. E não posso deixar de sublinhar o lado do convívio entre o público, num espaço seguro e de afeto. Isso é um aspeto que muitas vezes também surpreende as pessoas pela positiva.
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