PT
Entre a necessidade de equipa especializada, os custos de rodagem e a difícil rentabilização com exibição, o cinema parece uma vocação aterradora. Contudo, há uma paixão que move quem procura trabalhar na área e que parece não se extinguir face às adversidades. Há uma massa de novos criadores em cinema numa cidade com novas infraestruturas onde ele pode ser criado, mas também vivenciado. Procuramos quatro criadores em diferentes etapas de um percurso voltado para a luz que encontramos em salas escuras.
Começando pelo princípio: a formação. Ao longo dos anos, o curso de Som e Imagem da Universidade Católica do Porto ganhou reputação como uma plataforma de criação de novos cineastas. Para além daqueles que seguem uma vertente de produção audiovisual ampla, o curso já formou nomes que se tornaram criadores fundamentais no cenário cinematográfico nacional: o produtor Rodrigo Areias (fundador da produtora independente Bando à Parte), os realizadores José Magro e João Niza Ribeiro (fundadores da Pântano Filmes), ou Luís Costa e André Guiomar (criadores da Cimbalino Filmes).
Foi ao detetar esta corrente de alunos com foco em cinema que a instituição criou, em 2020, a licenciatura em Cinema. É na Escola das Artes desta universidade que encontramos Pedro Alves, coordenador da licenciatura, que faz o balanço da “primeira fornada” de licenciados: contam já com dois prémios para curtas documentais nos Prémios Sophia, e uma obra de ficção premiada na secção Take One do Curtas de Vila do Conde. Pedro define a metodologia pedagógica como aprendizagem baseada em projetos, “um modelo pedagógico que não é propriamente novo, mas que em Portugal não se vê muito na área do cinema”. Assim, os alunos aprendem desde logo a integrar uma equipa que compreende produtores, guionistas, diretores de fotografia, realizadores, e editores — até porque, aponta, “muitos deles estão ainda numa lógica de descoberta da área em que se querem especializar”.
© Rui Meireles
Um dos alunos que já completou esta descoberta é João Mendes Pinto que, na mais recente edição de 2023 dos Prémios Sophia, venceu o Prémio Estudante com a curta documental Enquanto Houver Ovelhas, que segue um casal de pastores em Seia. Contudo, confessa que o documentário não é o único formato que pretende explorar no papel que escolheu no cinema: a realização.
Recentemente licenciado em Cinema, está agora a integrar um mestrado na área e a aproveitar para alavancar a rede que existe nos trabalhos de estudante: colegas nas diferentes vertentes de produção. Sobre os planos para o futuro, cita um realizador que é sua referência, o finlandês Aki Kaurismäki: “Nunca fiz um grande filme, mas fiz vários medíocres.”
Enquanto Houver Ovelhas de João Mendes Pinto, © DR
Portugal, doc., 2022, 20’
E que filmes serão esses? João não se diz (ainda?) preso a um meio ou a um género. Fala de ideias que o agarram e que o impelem para um novo projeto, mas que “ser realizador não é uma carta branca para ter crédito em tudo”. Assim, essa ideia original “é algo que é construído com a equipa. A forma como se ilumina, a interpretação do diálogo pelos atores, tudo são coisas que constroem o filme”.
João diz ter consciência da dificuldade de fazer cinema em Portugal, mas defende que isso não chegou sequer a entrar no processo de decisão. “Não tinha outra hipótese senão seguir esta paixão.” Recusa mesmo ponderar migrar para outro país onde fazer filmes possa ser mais fácil, porque, diz, “quero filmar o que eu conheço, e o que eu vivo quotidianamente. Se eu agora aterrasse noutro país para filmar, ia ter uma visão exotista. Como quando alguém chega aqui, filma a ponte D. Luís e acha que inventou a roda”.
© Rui Meireles
© Rui Meireles
Mariana Bártolo sente esse mesmo apego às histórias que conhece, sobretudo agora com o que chama de “síndrome de emigrante”, uma vez que está a residir na Alemanha. Originalmente estudou na Escola Superior de Dança, em Lisboa, onde “já toda a gente sabia que eu andava com a câmara comigo, as pessoas habituaram-se a essa espécie de extensão de mim”. A opção pela dança perdeu força e começa a candidatar-se a cursos de cinema pela Europa. “Queria algo que fosse media art e não apenas estudos de cinema típicos” — e foi o que encontrou na KHM — Academy of Media Arts em Colónia, Alemanha.
Apesar de ter entrado no curso com a prática de fotografia em mente, o cinema foi ganhando lugar e agora é o seu foco principal, sendo que o início do percurso deixou as suas marcas. “A dança ainda informa o trabalho que eu faço e o trabalho que eu faço com atores. A fisicalidade, as emoções que o corpo desperta.”
As Gaivotas Cortam o Céu de Mariana Bártolo e Guillermo García López, © DR
Portugal, fic., 2023, 18’
Em 2023, integrou uma exibição de três curtas portuguesas na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes, com o documentário As Gaivotas Cortam o Céu, correalizado com García Lopez. Mas Mariana admite que é “desapegada de prémios”. “Eu sei a importância que isso tem no currículo, mas não sou uma deslumbrada com essas coisas. Muito pelo contrário, sou mais dissidente, mais underground”. Ainda assim, houve tempo para o essencial. “Lembro-me de um momento que foi muito importante, que foi ir ao cinema e ver o filme do Salaviza e perceber ‘ah, é para isso que eu estou aqui’. Emocionei-me bastante com o filme, e também serviu para voltar à realidade, no meio daquele ambiente de show-off.”
A realidade acaba por ser o objeto principal da realizadora, contando já com três curtas documentais e duas de ficção que se baseiam na sua própria memória afetiva. Esta exposição é algo incontornável para Mariana. “Não conseguimos fugir de nós mesmos, embora goste de, com a autoficção, ir um pouco para além de mim.”
© Rui Meireles
Esse é mesmo o ponto de partida para o filme em que Mariana está agora a trabalhar. À Mesa é um documentário experimental que parte dos lugares fixos à mesa que cada membro de uma família tem. “É uma especulação sobre como, eventualmente, esses lugares afetam quem nós somos, e uma reflexão entre papéis de género, papéis da família.”
Entre a sua experiência pessoal e a de outras pessoas, este documentário experimental toma como narradores principais as filhas mais novas e a relação entre o seu lugar à mesa e um futuro lugar na sociedade.
© Paulo Cunha Martins
À Mesa, de Mariana Bártolo, foi uma das obras escolhidas pela bolsa Pascaud, uma das duas categorias de bolsas anuais de financiamento da Filmaporto. Criada pela Câmara Municipal do Porto em 2021, a Filmaporto é uma film commission — um tipo de entidade vocacionada para promover e apoiar a produção cinematográfica em cidades ou territórios específicos. Este apoio passa pela promoção de profissionais portuenses, a assistência operacional a produções estrangeiras que se desloquem ao Porto para filmagens, e a atribuição de bolsas para produções rodadas inteiramente na cidade. Estes apoios — a Bolsa Neves e a Bolsa Pascaud (em homenagem aos pioneiros da exibição de cinema no Porto, António Neves e Édmond Pascaud) — atribuíram já 15 bolsas no valor de 20.000 euros cada.
Embora seja um instrumento para a indústria, a Filmaporto
tem um ponto de contacto com o público: desde a inauguração do Batalha Centro de Cinema, todas as últimas quintas-feiras de cada mês tem lugar a exibição das Sessões Filmaporto, onde são apresentados filmes de novos realizadores portuenses, filmados no Porto, e que não tenham ainda tido apresentação pública na cidade.
Esta vertente de dar espaço a cineastas emergentes integra a missão do Batalha Centro de Cinema, que completou em dezembro passado o primeiro ano de funcionamento no requalificado edifício emblemático. Para além de ciclos temáticos e retrospetivas que incluem novas formas de fazer cinema, há um outro programa inteiramente dedicado a novos criadores: o ciclo Luas Novas. Conforme o nome sugere, coincidindo com o dia do mês em que a lua entra na fase de Lua Nova, tem lugar uma sessão dedicada à obra de um cineasta que não tenha ainda realizado a sua segunda longa-metragem, sendo habitualmente seguidas de uma conversa entre os criadores e o público presente.
Tomás Paula Marques foi a convidada que inaugurou as Luas Novas do Batalha, em dezembro de 2022. A sessão incluiu as três primeiras curtas-metragens da realizadora e terminou com When We Dead Awaken, um filme-performance em projeção analógica e com a participação da colaboradora assídua João Abreu. Paula estreou recentemente a nova curta, Dildotectónica, e prepara já o próximo trabalho. Em conversa, admite o cinema como um chamamento tardio. Embora sempre presente, durante a adolescência “tinha interesse por literatura, pela fotografia, pelo teatro também, pela interpretação”, e o cinema acabou por ganhar supremacia como “uma intersecção entre todas as outras expressões artísticas”.
Mas não só. Viu também que o cinema “permitia um projeto de empatia e de criação de debate, através da modelação das emoções e do tempo”, que as outras artes não alavancavam da mesma forma. Esta modelação de emoções apenas é possível através de um trabalho próximo com intérpretes, uma capacidade desenvolvida desde logo na Escola Superior de Teatro e Cinema, de Lisboa. A licenciatura foi seguida de uma pós-graduação em Sociologia, mas Marques não reconhece aí um desvio. “No fundo, eu considero também o cinema como uma possível ciência social e, nesse sentido, ir para Sociologia veio de uma escassez que senti na licenciatura em Cinema: uma negligência em relacionar a representação do outro com um quadro maior, com um contexto.”.
© Andreia Merca
1, 2 | When We Dead Awaken de Tomás Paula Marques, © DR
Portugal/Espanha, fic./exp., 2022, 10’
3, 4 | Dildotectónica de Tomás Paula Marques , © DR
Portugal/Espanha, fic./exp., 2023, 16'
Sessão de Luas Novas dedicada a Tomás Paula Marques no Batalha Centro de Cinema, © Paulo Cunha Martins
Esta profundidade procurada no campo da Sociologia foi seguida de uma exploração de métodos de produção diferentes num Mestrado na Escola de Cinema Elías Querejeta, no País Basco. “Eu sentia que estava a ficar infeliz no tipo de modelo de produção que fazia, pela frustração de precisar de ter uma equipa em que havia cargos muito definidos e hierárquicos — cargos que existem por alguma razão, não estou a desvalorizar isso, mas que nos limitam a uma lógica linear de olhar para as rodagens.” Na Elías Querejeta, escola focada na rodagem em película e em formas mais “impulsivas” de fazer cinema, realizou When We Dead Awaken, uma assumida quebra com o estilo das curtas anteriores.
Embora tivesse já sido um tema aflorado em Cabra Cega, When We Dead Awaken representou também a entrada num tema que Tomás Paula Marques já investigava desde os tempos da Sociologia, o da dissidência de género e a perseguição de pessoas queer desde os tempos da Inquisição. Este é um tema, aliás, que percorre ainda o mais recente filme da realizadora, Dildotectónica, onde contou com a colaboração, mais uma vez, da atriz João Abreu. João estava alinhada com os temas da investigação de fundo sobre a dissidência de género. “Sentimos que pensávamos de formas semelhantes relativamente a muita coisa e eu comecei a partilhar com ela também a minha investigação e as ideias que eu comecei a ter, e sentimos uma grande afinidade — é uma colaboração a que eu dou muito valor e que é muito frutífera, também por sermos duas pessoas trans e de partilharmos muitas experiências.”
João Gonzalez também já foi convidado de uma das Luas Novas do Batalha, em 2023, numa sessão que integrou também uma performance musical interpretada pelo realizador. Essa presença da música revela um percurso que podia ter perfeitamente tomado outro rumo. Começou a aprender a tocar piano aos quatro anos. Aos 12, a pauta é interrompida por uma aposta forte em voleibol profissional, tendo mesmo chegado a jogar no Académica de São Mamede. Pelo caminho, há desenhos que são feitos, não perdendo de vista uma ideia de caminho por Arquitetura. Corta para o ensino secundário e João ingressa em Ciências, com o propósito de ingressar numa licenciatura em Engenharia Informática. Mas o exame de Matemática não corre como esperado, e é aceite na segunda opção: Multimédia, no Politécnico do Porto.
Entre tantas avenidas possíveis, poderia parecer um mero acaso ter desembocado na animação, mas, em boa verdade, a animação já esperava por João, como um velho cadeirão que já assume a forma do nosso corpo. “A animação é uma combinação natural de tudo aquilo que eu gosto de fazer, não é?” Não só a animação combinava o cinema, a música e o desenho, como acumulava uma função essencial: o controlo. Este é um aliciante que é assumido sem hesitação por João Gonzalez: “Posso controlar os sons, posso controlar os timings de tudo. Posso saber exatamente como é que o público vai receber e interpretar a história que estou a contar.”
© Nuno Miguel Coelho
1, 2 | Ice Merchants de João Gonzalez, © DR Portugal/França/Reino Unido,
fic./anim., 2022, 14’
3 | Nestor de João Gonzalez, © DR
Portugal/Reino Unido, fic./anim., 2019, 6’
4 | Voyager de João Gonzalez, © DR
Portugal, fic./anim., 2017, 4’
© Nuno Miguel Coelho
Esse controlo é aumentado pela natureza solitária do trabalho em animação, algo que João valoriza: “quando estou a animar e a fazer um filme que gosto muito, eu entro num estado de transe que nem ia resultar muito bem com outras pessoas”. Assume, contudo, que há sempre uma equipa valiosa por trás, como por exemplo a equipa que ajudou no coloring de Ice Merchants (2022).
Foi, aliás, com Ice Merchants que João atingiu o que poderia ser encarado como um triunfo: a nomeação para os Óscares de Melhor Filme de Animação. É nesse momento que entra o vendaval mediático, onde se sucedem as entrevistas e as explicações de quem se é e do que se faz. Mas o realizador não vê de todo um antes e um depois deste momento. “A minha vida não mudou drasticamente, até porque eu não quero que mude. Eu gosto bastante da minha vida como está.”
Confessa que esta nomeação foi algo que abriu portas na indústria e fala da surpresa de “o filme ter sido distribuído em sala de cinema durante três meses; algo inédito para uma curta-metragem e acolhida com ótimos números de afluência. Uma coisa surpreendente”. Mas não pretendo pegar nisto como o ponto de lançamento para ir para Hollywood. Gosto da minha vida aqui no Porto, e a minha prioridade é sempre poder fazer os filmes que eu quero fazer. Mais do que fazer uma grande produção para Los Angeles.”
Fazer filmes no Porto, então, implica que a cidade esteja presente de alguma forma? Segundo o realizador, será algo inconsciente porque “somos sempre influenciados pelo que nos rodeia”, mas reconhece que há uma característica portuense que impregna os seus filmes. “Tem muito que ver com a arquitetura. É uma cidade muito vertical. A casa no precipício de Ice Merchants é algo que tu consegues ver na Ribeira.” Esses passeios pela cidade ecoam agora em desenhos em movimento, mas também em passos dados num espaço virtual. Para cada projeto, João Gonzalez modela em 3D o cenário onde a ação decorre — permitindo-lhe entrar num espaço que será, mais tarde, comprimido pela ponta do lápis para duas dimensões. Modelos que não são usados nos filmes finais, mas que decerto serão um inusitado artefacto de making of.
por Ricardo Alves
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