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Titus, TNSJ © José Caldeira
“Vamos contar uma história sangrenta”, adverte, logo no início do I Acto, Saturnino (Rui Maria Pêgo), futuro Imperador de Roma e uma espécie de narrador/apresentador do espetáculo Titus, de Cátia Pinheiro e José Nunes, que também assinam, com Hugo van der Ding, a adaptação de Titus Andronicus, de William Shakespeare.
Neste espetáculo, acompanhamos o regresso do general romano Titus Andronicus (Pedro Frias) depois de vencer a guerra contra os godos ("os bárbaros"). Segundo José Nunes, “o contexto do pós-guerra, que supostamente começa a peça, nunca é um contexto de fim de guerra, porque as feridas da guerra não se apagam com um ‘clique’, e o sangue continua a ser derramado”.
Escrita entre 1589-91 e publicada pela primeira vez em 1594, Titus Andronicus “foi uma das primeiras peças de Shakespeare, e considerada por muitos uma peça até um pouco ‘imperfeita’”, diz o encenador no final de um ensaio à imprensa. “Para nós, faz todo o sentido fazer esta peça no contexto em que vivemos. Em 1590, Shakespeare falava sobre o Império Romano, e em 2025 esta peça pode ser sobre a Palestina ou a Ucrânia”.
Em Titus, as personagens são movidas por um desejo de vingança, “todas elas encontram uma justificação moral para os atos que cometem, e isso é o que nós estamos a assistir hoje nesses conflitos”, acrescenta o cofundador da Estrutura, responsável pela criação do espetáculo.

Titus, TNSJ © José Caldeira
Nesta encenação, “há uma certa exposição gráfica, porque é a linguagem contemporânea”, que é utilizada para “provocar uma reação no espectador”. “Há uma certa banalização da violência e a desumanização do Outro no contexto de guerra, mas também no telemóvel, quando estamos a fazer scroll num feed em que nos aparecem essas imagens”, defende José Nunes. “Acontece quando estamos a consumir conteúdos noticiosos, em que todos eles também mostram essa violência.”
O encenador acredita, contudo, no poder transformador do teatro enquanto mecanismo capaz de provocar os espectadores e levá-los a refletir sobre essa banalização da violência e do ódio: “acredito que presenciar um espetáculo ao vivo pode promover outro tipo de relação com esses conteúdos, que faça o espectador posicionar-se sobre essa exposição de violências, e pensar sobre o que está a ver, não de forma acrítica - pelo menos, era isso que eu gostava.”

Titus, TNSJ © José Caldeira
Neste espetáculo, onde também entram ecrãs, néons e música techno, há “uma linha ténue entre a tragédia e a comédia”, “um jogo” que já vem da peça de Shakespeare, e que contribui para “uma negociação moral que o espectador tem de fazer, até de se rir de determinadas coisas ou não, e depois perceber que se está a rir de coisas que se calhar são problemáticas”. “Interessa-nos ativar esse trigger no espectador”, sublinha.
Quando Titus regressa a uma Roma sem imperador, morto em batalha, coroa Saturnino – em detrimento de Bassiana, sua irmã, que também reivindicava o trono por se considerar mais digna. Saturnino é, pois, eleito imperador “por ser o primogénito”, e “contra a vontade do povo, que preferia Bassiana”. Contudo, diz-nos José Nunes, "logo nas primeiras páginas do texto, percebe-se que Saturnino é mais autocrático, a pior escolha possível”, mas, “por uma questão de herança, é o escolhido”.
Se no texto original do dramaturgo inglês apenas duas personagens são mulheres, nesta adaptação da Estrutura considerou-se pertinente que a história fosse contada com mais personagens femininas; é o caso de Bassiana, originalmente Bassiano. “Ao criarmos isso, estamos a colocar outras questões": o facto de Bassiana ter um relacionamento lésbico com Lavínia (Tita Maravilha), filha de Titus, “torna ainda mais violento o que acontece a esta personagem ao longo da peça”, sustenta José Nunes.
Em Titus, que conta com a interpretação de Cátia Pinheiro, Maria Inês Peixoto, Pedro Frias, Roldy Harrys, Rui Maria Pêgo, Tiago Jácome, Tita Maravilha, João Nunes Monteiro, João Oliveira e Vicente Gil, o encenador frisa, ainda, que não houve uma “aniquilação da identidade dos intérpretes”. “A identidade dos intérpretes é trazida para cena e está vincada às personagens, mas também há uma relação com aquilo que nós, espectadores, sabemos daquelas personagens, seja sobre a Tita [Maravilha], mas também sobre a Tiago Jácome ou sobre o Rui Maria Pêgo”.
O espetáculo é uma criação da Estrutura em coprodução com o Teatro Nacional São João e o Centro Cultural de Belém, e está em cena de 27 de novembro a 7 de dezembro, no Teatro Carlos Alberto. No dia 6 de dezembro, às 16h00, o Teatro Carlos Alberto acolhe a conversa Titus: A Anatomia do Ódio, que junta as consultoras científica e dramatúrgica de Titus, Joana Ricarte e Maria Sequeira Mendes, a Hugo van der Ding – que, com os encenadores Cátia Pinheiro e José Nunes, assina a adaptação –, para explorar "a perturbadora atualidade desta peça”.

Titus, TNSJ © José Caldeira
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