EN
“Aglomeração de pessoas que se deslocam pela rua em ambiente festivo, cantando e dançando.” No dicionário, é esta a definição que encontramos para esta tradição sanjoanina que por cá continua bem viva. Se antigamente as rusgas eram formadas espontaneamente por grupos de pessoas que percorriam as ruas, cantando, dançando e tocando instrumentos, hoje fazem parte da programação oficial do São João do Porto e vão a concurso – mas nem por isso perderam a sua essência: a alegria coletiva e o espírito comunitário vividos durante esta festa popular.
Este ano, é na noite de 21 de junho que acontece o desfile das rusgas (nunca confundir com marchas!) das sete freguesias e uniões de freguesia da cidade. É em frente à Câmara Municipal que vão atuar perante um júri e “despicar-se” para mostrar quem é a melhor. A Agenda Porto foi ao encontro dos “rusgueiros” que, entre ensaios, preparativos e memórias, são os protagonistas de uma das noites mais animadas da quadra sanjoanina no Porto.
Nas rusgas do ano passado, a freguesia do Bonfim levou a melhor, conseguindo um total de 222 pontos, e agora não quer abdicar do título de vencedora. “Vamos ficar em primeiro”, afirma, a rir, Marlene Arantes, de 40 anos, presidente da Associação de Moradores da Lomba e a abelha-mestra da Rusga da Freguesia do Bonfim. Desde que assumiu esta responsabilidade, em 2022, que o Bonfim ficou sempre em lugares do pódio. “Começamos a pensar nas rusgas logo em janeiro, quando fazemos uma breve reunião para apresentar ideias e selecionar o tema da rusga; a partir daí começamos a trabalhar, a procurar os músicos, os coreógrafos e os cenógrafos. Depois, convocamos as pessoas e cada uma escolhe de que forma quer participar na rusga; há pessoas que só vêm mesmo no dia como figurantes.”
Marlene frisa que “a rusga é aberta a toda a gente, não apenas às pessoas da freguesia” e mostra-se satisfeita por haver novos moradores interessados em participar. “Há muita gente nova a viver no Bonfim que desconhecia as rusgas e que o ano passado viu o desfile e procurou a Junta de Freguesia com o intuito de participar. Este ano, já tivemos várias pessoas que nos procuraram logo em janeiro e fevereiro a avisar que queriam participar não só na dança, mas queriam ajudar a fazer os cenários.”
Ensaio da Rusga do Bonfim em 2025 © Guilherme Costa Oliveira
No mês de maio, os ensaios acontecem uma vez por semana, no pátio da Junta de Freguesia do Bonfim, mas a partir de junho “é todos os dias, praticamente”. Não é preciso ter grande jeito para a dança, o importante é ter vontade de participar e “vestir a camisola da freguesia”. “Eu sou um pé chumbo e vou sempre lá (risos).”
Ensaio da Rusga do Bonfim em 2025 © Guilherme Costa Oliveira
A primeira vez que Marlene saiu numa rusga “era miúda” e já tinha este formato de concurso. Desde então as rusgas “não mudaram grande coisa ao nível das regras”, como, por exemplo, a proibição de sapatilhas e de acessórios alusivos aos tempos modernos, mas considera que “ultimamente, tem havido mais preocupação com os figurinos, quer por parte da organização, quer por parte dos participantes”. “Tudo conta para a pontuação do júri”, frisa. Verifica-se, por isso, uma certa “profissionalização” das rusgas: “Antigamente era mais fácil, o vizinho de baixo tocava cavaquinho, o vizinho da rua de cima tocava bombo, e juntavam-se ali todos e fazia-se a rusga. Além de, nos últimos anos, se ter elevado a fasquia, há pessoas que não têm tempo – ou que não querem dar o seu tempo – e acaba por ter de ser obrigatório contratar pessoas para assumirem determinadas tarefas.”
No entanto, não é por contarem com profissionais que as coisas correm sempre bem. Marlene recorda, a propósito, “a peripécia” do ano passado, em que, depois de ver o trabalho apresentado pela equipa de cenografia contratada, foram os elementos da rusga que, “em comunidade”, e à última da hora, construíram os cenários em três dias. “Não desvalorizando todo o nosso trabalho e o das outras rusgas lá na praça para o júri, acho que toda a [nossa] equipa mereceu o primeiro lugar por tudo o que aconteceu; acabámos o cenário na sexta-feira à uma da manhã e precisávamos dele no sábado à tarde”, lembra. Mas são, também, estes percalços que reforçam o espírito de comunidade. “As pessoas esquecem que são de São Vítor, da Lomba, ou de Santos Pousada e juntam-se para trabalhar. E os adolescentes que participam acabam por aprender, não estão ali só a divertir-se; vão aprender e ganhar valores e princípios para a vida deles”, sublinha.
Esta “rusgueira” defende que, no fim de contas, “o que importa é a comunidade e o espírito de entreajuda”, embora não esqueça que “a gente também está ali a trabalhar, e o primeiro lugar acaba por mostrar perante os outros o nosso trabalho”.
Para este ano, em que o compositor da música original é o Nestinho (“é uma pessoa que também é daqui do Bonfim, e que a malta adora”), a perspetiva é de terem mais de 200 participantes. “O facto de termos sido campeões acaba por ajudar e trazer ainda mais pessoas porque querem fazer parte da equipa vencedora”, ri-se.
Catarina Gonçalves Dias, responsável pela área da ação social da Junta de Freguesia de Paranhos, nunca tinha participado numa rusga de São João até 2023, altura em que assumiu, juntamente com a colega Teresa Mota, a coorganização da rusga daquela freguesia. Até então, “o único contacto” que tinha tido com esta tradição foi, aos 15 anos, quando a sua avó a levou a ver um desfile de rusgas.
Mas, a partir do momento em que começou a assistir aos ensaios e a ouvir as conversas dos participantes mais antigos, adquiriu um entendimento mais profundo desta tradição. As rusgas começaram por ser movimentos “totalmente espontâneos de grupos de pessoas das zonas periféricas da cidade que se juntavam na noite de São João e iam agregando mais pessoas ao longo do percurso; paravam num bailarico num determinado sítio, depois iam a outro e juntavam-se todas no sentido de chegar à Ribeira em grupo, e faziam brincadeiras e danças de forma muito pouco rigorosa e organizada, que não é o que se passa agora”, lembra, referindo que, “para preservar a tradição, as rusgas foram regulamentadas e transformaram-se num concurso”, onde o rigor nos trajes, a qualidade da música e a originalidade das letras passaram a ser critérios de avaliação.
Rusga de Paranhos em 2023, © Guilherme Costa Oliveira
Sobre a Rusga de Paranhos, conta que, “em conjunto com o Rancho Folclórico de Paranhos e outras associações locais, decidiu-se alterar o formato da organização da rusga para torná-la mais inclusiva”, acrescentando que “a responsabilidade” passou para a Junta de Freguesia, que convidou diversas entidades recreativas e culturais a participar na organização, nomeadamente o TIPAR – Teatro Independente de Paranhos, a Associação de Ocupação Sadia do Lazer (AOSL), o Grupo de Cavaquinhos, os escuteiros da Areosa e de Paranhos, e os clubes desportivos Cruz e Salgueiros. Depois, são lançados convites à participação da comunidade através das redes sociais da autarquia. “É tudo muito orgânico; até ao dia, estamos sempre a acrescentar pessoas. O ano passado, enchemos dois autocarros.”
Rusga de Paranhos em 2023, © Guilherme Costa Oliveira
Reportando-se à sua experiência na rusga do ano passado em que, pela primeira vez, saiu a dançar, ressalta “o sentimento de alegria” e lamenta que “passe depressa”. “O percurso até chegar à Câmara Municipal, as pessoas a bater palmas, nós a cantar e a dançar e a envolver quem estava à volta, é um sentimento de alegria muito bom”, mas “andamos imensas semanas a organizar a rusga para depois acontecer de uma forma muito rápida e ficar aquele sentimento de já acabou!?”.
No que toca à competição entre as rusgas, Catarina acredita prevalecer o fairplay e o espírito de partilha. “No ano passado, éramos a primeira rusga do desfile, e como tínhamos muito material para descarregar, tivemos de sair na Praça dos Poveiros, e estavam muitas rusgas a aguardar ‘para ganhar’ as suas posições, ao longo das ruas de Santa Catarina e de Passos Manuel, e toda a gente começou a bater palmas e a desejar boa sorte”, recorda. “No momento, acho que [as rivalidades] se esquecem, pelo menos em relação a nós. Sei que há outras rusgas em que o bairrismo é mais aceso”, ri-se. E sublinha: “Sempre senti que as pessoas estavam muito disponíveis para nos ajudar. Há um sentimento de partilha, de união; há um sentimento de bairrismo, mas também de fairlpay.”
Apesar de reconhecer que, para os participantes mais antigos, a transformação das rusgas num concurso formal afastou-as do “espírito de raiz”, Catarina valoriza o esforço de respeitar as regras no concurso das Rusgas de São João. “Sabemos que não devemos mostrar tatuagens, ou usar unhas de gel ou maquilhagens exageradas, porque não se trata de uma marcha”, explica, reforçando o respeito pela simplicidade. Neste sentido, admite que “o despique se sente quando alguma rusga não teve tanta atenção a determinados pormenores, e que ainda assim fica à frente na pontuação; nessas situações, tento explicar que muitas pessoas são figurantes que aparecem ‘à última da hora’, o que também nos acontece a nós”.
Se há alguém que leva o São João muito a sério – mas sempre com um sorriso – é Tânia Rodrigues, da Junta da Freguesia de Ramalde. “Eu sou muito coração, e adoro as festas de São João”, diz, com entusiasmo.
A Rusga de Ramalde não é só uma participação festiva – é um manifesto identitário. “Queremos representar nas rusgas um bocadinho da identidade da nossa freguesia, algumas pessoas que fazem parte da história, algumas instituições que se mantêm em Ramalde.” E essa identidade passa pelos “bois dos cornos grandes”, pelo “Ramalde rural – éramos uma freguesia de cultivo, que vivia da agricultura e, por isso, essa característica está sempre presente nas nossas rusgas”; e, claro, pelos lavadouros – “que eram o Facebook da época”. Era nos tanques que as mulheres se encontravam “e falavam das suas vidas, dos seus problemas; todas eram psicólogas, assistentes sociais, médicas”.
Rusga de Ramalde em 2023, © Rui Meireles
A Rusga não nasceu na Junta – começou com a Associação Recreativa e Cultural Conjunto Dramático 26 de Janeiro – mas foi Tânia quem lançou o repto para unir forças, juntar mais associações e fazê-la renascer. “A culpa foi minha”, confessa, entre risos. O resultado? Uma rusga intergeracional, com cerca de 150 a 200 pessoas, “desde bebés até idosos com 90 anos”. “O ano passado levámos um bebé de quatro meses ao colo, filho de uma menina que sempre participou connosco nas rusgas... e às vezes ainda vai a bisavó do mais pequenino”, recorda.
Rusga de Ramalde em 2023, © Rui Meireles
Dias antes da rusga, há uma máquina criativa montada com rigor e dedicação. As roupas são todas feitas pela Universidade Intergeracional de Ramalde (UNIR), destacando-se Carminda Silva, antiga modista. “É ela a cabeça disto tudo”, afirma Tânia. “Eu e a Carminda sentamo-nos, desenhamos as roupas, vamos comprar os tecidos e depois há um conjunto de pessoas que percebem de costura e que se juntam a nós.” E se aparecer alguém à última hora, improvisa-se. Já ficaram até às quatro da manhã a coser fatos – “Isto é que é espírito de solidariedade!”. Quanto aos acessórios e aos carros alegóricos são feitos “pela turma do Ateliê de Artes Plásticas da UNIR e pelos funcionários da Junta”.
Mas “mais do que investir nos carros alegóricos, nós investimos nas pessoas e na alegria das pessoas”, assegura. A classificação? “Andamos pelo quarto, quinto lugar; nunca ganhámos, mas temos vindo a melhorar... Quem sabe se este ano não estamos no pódio?”
Os ensaios costumam acontecer no Bairro de Ramalde do Meio, e os participantes são aplaudidos pelas pessoas às janelas. “É bonito ver que fazemos parte de um todo, que a comunidade existe porque cada um de nós faz qualquer coisa por isso.” Mais do que uma exibição, é um gesto de pertença.
É terça-feira à noite. Ainda nem começámos a descer a rua do Sol e já se ouvem os instrumentos da tocata da Rusga da União de Freguesias do Centro Histórico que ensaia no pátio da Escola do Sol. “Vira!” – A voz de comando é do presidente da União de Freguesias, Nuno Cruz, antigo boxeur, que indica aos participantes quando devem movimentar-se no sentido contrário. Foi ele próprio quem, este ano, desenhou a coreografia. “O ano passado, entreguei [a rusga] a uma associação e as coisas correram bem, fizeram um espetáculo muito bonito, mas eu este ano falei com a associação e disse que gostava que as coisas corressem da minha forma; ‘eu apoio-vos na mesma, nós trabalhamos em conjunto, mas deixai-me pensar quem é que vai cantar, quem faz a coreografia’; as pessoas aceitaram e está aí o resultado, está a ver esta moldura humana”, conta Nuno Cruz à Agenda Porto, apontando para o grupo de “rusgueiras” que ensaiam – são, sobretudo, mulheres e raparigas. O presidente da União de Freguesias lamenta que haja poucos homens a aderir, mas salienta que conta com “raparigas jovens que já o ano passado participaram e que são um grupo forte da Sé”.
Nuno Cruz refere que a Rusga do Centro Histórico conta com o envolvimento de várias associações, entre as quais a Azul de Eleição, o Clube Desportivo e Cultural dos Guindais, a Associação de Moradores da Bouça, o Coro do Centro Histórico do Porto e a Huellatina, uma associação de imigrantes da América Latina. “Temos esse trabalho de aproximação às associações, que depois captamos [para participar nas rusgas]”, refere.
Ensaios da Rusga da União de Freguesias do Contro Histórico em 2025, © Ana Caldeira
Desde que está à frente da União de Freguesias do Centro Histórico, integrou sempre a organização das rusgas e frisa que “não foi fácil unir seis freguesias que foram sempre rivais [nesta competição]”. “Todos os anos, apresentei uma rusga, mas não era mesmo fácil.” E, apesar de ainda não ter alcançado um lugar no pódio, garante que “o importante é as pessoas participarem e divertirem-se”.
Ensaios da Rusga da União de Freguesias do Contro Histórico em 2025, © Ana Caldeira
Este ano, esta rusga conta com letra e música da autoria de Adriano Ferreira, “um freguês de Cedofeita”, e o artista convidado é Alberto Índio. “Posso-lhe já dizer que esta música, depois das rusgas, vai para as plataformas de música online para que quem quiser possa ouvir”, adianta. Nuno Cruz afirma que tem uma ligação afetiva “muito grande” a esta tradição. Antes de ser autarca não participava, mas recorda que “nasceu numa rua que tinha três freguesias; de um lado era Vitória, do outro era Miragaia e de outro lado era São Nicolau, e era difícil tomar um partido [nas rusgas], mas as pessoas tinham muito orgulho em participar”. E acrescenta: “nós temos de agarrar esse orgulho e encher o peito e ir para a Avenida dos Aliados mostrar [nas rusgas] tudo aquilo que a gente ama nesta cidade.”
Juntar Massarelos e Lordelo do Ouro na mesma rusga pode parecer, à primeira vista, uma tarefa difícil. Mas, com paciência, um coreógrafo inspirado, um grupo de pessoas com vontade de sair à rua para festejar – e uns quantos “tamancos” bem calçados –, a união aconteceu. E já lá vão mais de dez anos. Ana Paula Diniz e Miguel Ramalho são os fiéis guardiões desta aliança. Representam a Junta de Freguesia de Lordelo do Ouro e Massarelos nas rusgas e são, ao mesmo tempo, os coordenadores dos bastidores: cuidam do guarda-roupa, dos adereços e de toda a organização. “Este casamento entre freguesias não foi muito fácil, mas tem durado anos”, conta Ana Paula Diniz.
Antes da união (em 2013), cada freguesia desfilava por si, orgulhosa da sua identidade. “Até aí, cada freguesia ia na rusga e eram todos adversários. Tinham ideias e projetos diferentes”, explica Miguel Ramalho. Quando chegou a hora de juntar esforços, cada uma queria puxar a brasa à sua sardinha. A ideia da união gerou desconfiança. As perguntas surgiam: “os ensaios vão ser em Massarelos? Por que é que não são em Lordelo?” – A solução foi diplomática: uma semana num lado, outra semana no outro. Um vaivém festivo que, a pouco e pouco, foi aproximando vizinhos e criando histórias em comum. “Hoje já se ouve dizer ‘L e M’, que é a abreviatura de Lordelo do Ouro e Massarelos; acho que é um bom sinal”, diz Ana Paula, com um sorriso.
Ana Paula Diniz e Miguel Ramalho da Rusga de Lordelo do Ouro e Massarelos, © Ana Caldeira
“A nossa presidente, Sofia Maia, foi a primeira presidente desta União de Freguesias, e tem sido ela a fazer este trabalho de aproximação”. A rusga tem sido o palco – e o pretexto – ideal para isso. “E se é para fazer, é para fazer bem! O Max Oliveira é o responsável pelas coreografias e, este ano, quis antecipar os ensaios. Logo no primeiro ensaio já tínhamos mais de 50 pessoas e as cópias não chegaram”, conta Miguel, entusiasmado.
Rusga de Lordelo do Ouro e Massarelos em 2024, © Guilherme Costa Oliveira
As letras e músicas são da autoria de Bino Ribeiro, “outro jovem quarentão que vive na freguesia e tem vindo a colaborar connosco; tem umas músicas bonitas e atrevidas”, partilha Miguel. Ana Paula ri-se e acrescenta: “Gosta de adicionar um picantezinho.”
Mas que não se pense que é só alegria e boa disposição. Há muito trabalho e atenção aos detalhes. “Eu não deixo escapar nada: ‘Atenção ao verniz! Às unhas! Ao batom!’”, assegura Ana Paula. Miguel reforça: “Estamos muito atentos, e talvez por isso nunca tenhamos sofrido penalizações nas rusgas. É um dos nossos maiores orgulhos.”
Claro que há sempre espaço para surpresas. Ana Paula não esquece o dia em que uma senhora apareceu com um decote generoso. “Olhei e disse: ‘valha-me Deus, vai ter de levar aqui um lencinho!’” conta, entre risos. Decote tapado, problema resolvido. “É tudo feito com o cuidado e o rigor necessário para manter a tradição.”
Agora, se nos perguntar: ‘Isso é fácil de usar?’ Não, não é”, admitem. “Se formos à raiz, as rusgas são um movimento espontâneo de pessoas que vinham dos arredores festejar o São João no Porto. E como é que vinham? De tamancos, descalças... Só quem tinha dinheiro é que vinha em cima de cavalos ou de burros”, revela Miguel. E acrescenta: “Vinham vestidos daquilo que sabiam fazer: leiteiras, peixeiras, pescadores, agricultores. Vinham com a roupa do dia-a-dia. Por isso, para os representar, não podemos usar sapatilhas nem havaianas.”
O dia da rusga é vivido com emoção. “Quando entro na rusga, sinto o coração a disparar. Já faço rusgas há tantos anos, mas é sempre uma emoção. Eu sou muito ‘rusgueira’!”, confessa Ana Paula. Para este ano, o objetivo é claro. “Queremos alcançar o primeiro lugar”, afirmam, convictos. “Trabalhamos com foco no pódio.” Mas, se não for este ano, tentam no próximo porque nesta rusga o maior prémio já está ganho: a freguesia unida.
Rusga de Lordelo do Ouro e Massarelos em 2024, © Guilherme Costa Oliveira
Fernanda Chalupa da Rusga da Foz do Douro, Aldoar e Nevogilde, © Nuno Miguel Coelho
Junto ao mar, do lado ocidental da cidade, se o São João escolhesse um par para dançar, chamar-se-ia Fernanda Chalupa. Com 34 anos de experiência nas rusgas, é ela quem comanda e une – entre lenços coloridos, alhos-porros e candeeiros de papel – este grupo de foliões da Rusga da Foz do Douro, Aldoar e Nevogilde.
É uma tradição feita de música, dança, figurinos e cenários de época, e que se repete, com rigor e alegria, a cada ano, no mês de junho. “É o mês que eu mais gosto, é um mês de festa”, confessa Fernanda. Afinal, para quem vive com alma “rapioqueira”, o São João é mais do que festa: é a celebração do ano. Começou em 1991, quando a Junta de Freguesia da Foz lançou um convite às coletividades próximas para organizar uma rusga. “Só o Orfeão [da Foz] disse que sim e com esse ‘sim’ fomos com tudo”: trajes a preceito, músicas feitas de raiz e um entusiasmo contagiante que lhes garantiu a vitória nos três primeiros anos. “Depois… temos ficado nos últimos três da classificação”, admite Fernanda pouco resignada com os resultados.
Como não são os resultados que os movem, a motivação continua, até porque a rusga é, antes de tudo, uma forma de juntar as pessoas da cidade. “Uma rusga é um grupo de pessoas que se junta para ir a uma romaria”, diz. Pode ser à Maia, ao Senhor da Pedra, ou apenas dali até ao centro do Porto – o importante é ir em grupo, a pé, em festa e em convívio. “Vamos com responsabilidade, mas com diversão também.”
E que festa é esta que exige tanto trabalho? Há que compor figurinos – “nós fazemos tudo”, garante – e reaproveitar trajes com olho de lince e mão de artista. Há que escolher temas ligados à tradição e ao território: as peixeiras, os lavradores, as lavadeiras. Há que montar a cenografia, pintar o cartão, cortar o papel. E, claro, preparar o banquete para depois do desfile: “oferecemos um lanche a todos os que participaram”.
E não falta, claro, a música. A rusga da Foz tem um verdadeiro hino de abertura: “Porto Rapioqueiro”, cantado de cor e salteado por todos os veteranos nos dias de abertura dos primeiros ensaios. A letra, desde sempre, é escrita pela mãe do maestro Afonso Alves – uma dupla de talento e dedicação que, todos os anos, inventa duas músicas novas: uma para o desfile, outra para a exibição. “E têm de ser originais. As duas.”
© Nuno Miguel Coelho
Mas nem tudo são facilidades. A rusga não é marcha, aqui não há arcos, nem vestidos com brilhos. Instrumentos de sopro, também já não passam. Há regras – e Fernanda cumpre-as com zelo, mesmo que de vez em quando as questione: “não se podem levar instrumentos de sopro. Não percebo, mas não se podem levar.”
© Nuno Miguel Coelho
O verdadeiro desafio, porém, é o tempo. Os anos passaram, os filhos cresceram e saíram da Foz, a Covid-19 afastou os mais velhos. “Mas ainda tenho aqui pessoas que nunca faltaram a uma rusga”, diz, com orgulho. E captar os mais novos? “Já não sei. Só se começarmos a envolver as escolas e as faculdades.”
Ainda assim, não se desiste. Este ano, participam os escuteiros de Aldoar, e o Orfeão do Porto vai dar uma ajuda na dança. Quando chega a semana da rusga, o salão do Orfeão da Foz transforma-se: cadeiras encostadas, tecidos espalhados, candeeiros de papel para retocar. E na véspera, apanha-se a carvalheira. Fernanda resume o espírito da rusga: “no final, esquecemos todo o trabalho que deu.”
Chegamos à Associação Nun’Álvares de Campanhã e damos com três fregueses a trabalhar afincadamente naquilo que será um carro alegórico. Ainda estamos no início de maio e contam que “é o segundo que fazem”; desfizeram o primeiro “porque não estava bem”. “Mais vale começar a fazer as coisas com antecedência e depois descansar e ver o que já está feito.”
Há 10 anos que Fernando “Lazinha”, António Pinto e Pedro Moreira, do Bairro do Falcão, são os responsáveis pelos carros alegóricos e pela cenografia da rusga de Campanhã, uma aposta forte desta freguesia para vencer o concurso. No ano passado, esta rusga fechou o terceiro lugar do pódio com o tema “Coração do Porto”, numa alusão ao coração de D. Pedro que jaz na Igreja da Lapa, e com os carros alegóricos a assumirem um lugar de destaque. “Vamos apostar forte nos carros, toda a gente sabe.” O material é reutilizado de um ano para o outro e “a inspiração é o tema da canção inédita”. “O carro leva tudo o que a nossa canção diz”, asseguram.
Ensaios da Rusga de Campanhã, © Ana Caldeira
Pedro Moreira conta que a primeira vez que participou nas rusgas, o seu filho, Zé Pedro, tinha 5 anos – hoje tem 45. José Pedro Moreira, que está a ouvir a conversa, é, desde 2014, um dos organizadores da rusga de Campanhã, juntamente com Luís Ramos e Sónia Alves. Os três foram condecorados pela Junta de Freguesia com uma medalha de mérito “por uma década de dedicação” às rusgas de São João. Vigilante de profissão, Zé Pedro, como é chamado, é uma pessoa bem conhecida em Campanhã. “Sou o líder, e tenho de estar nos ensaios; sou eu quem decide. Elas [as participantes da rusga, que são sobretudo mulheres] vêem é o Zé Pedro. O Luís é o estratega, que idealiza a coreografia, por exemplo; e a Sónia supervisiona, está atenta aos detalhes, retifica erros”, conta.
Ensaios da Rusga de Campanhã, © Ana Caldeira
Como o adepto aficionado que sabe de cor os anos em que o seu clube ganhou e perdeu campeonatos, também Zé Pedro recorda as vitórias e “os amargos de boca” da Freguesia de Campanhã no concurso das rusgas: “A primeira vez que participei tinha 5 anos; ganhei. Depois, em 93, ficámos em terceiro lugar, e foi a [atriz] Beatriz Costa que nos deu o cheque. Em 98, fomos campeões pela primeira vez. Em 2004, fomos desclassificados porque não sabíamos que não podíamos levar pirotecnia”, desfia. “Estivemos muito tempo parados, e em 2014, quando era vice-presidente da Associação Cultural e Desportiva do Bairro do Falcão, o antigo presidente da Junta de Freguesia, o senhor Ernesto Santos, convidou-me para organizar as rusgas. Fiquei reticente, mas o meu pai apoiou-me, e eu convidei o Luís e a Sónia para se juntarem a mim, e cada um tem o seu papel”.
Naquele ano, Campanhã ficou em terceiro; em 2015, ficou em segundo; e em 2016, “demos o duro e ficámos em primeiro lugar”. Entre 2016 e 2019, contou quatro vitórias seguidas, sagrando-se tetracampeã das Rusgas de São João. Depois do interregno devido à pandemia de Covid-19, Zé Pedro conta que, em 2022, queriam voltar a vencer, mas, admite, o tema que levaram “não era fácil”. “Falávamos dos bairros sociais porque Campanhã é a freguesia do Porto com mais bairros, e sofreram muito com a pandemia.” Nesse ano, recorda, emocionado, durante o desfile, os participantes da Rusga de Campanhã gritavam-lhe palavras de incentivo, “Zé Pedro, tenta! Traz-me o penta!”. Não aconteceu, mas, como facilmente se percebe, aqui ninguém gosta de perder. O fito é sempre ganhar. Mas nem por isso a alegria e a diversão ficam de fora, e Zé Pedro quer que toda a gente participe: “Há pessoas que todos os anos vão na rusga a dançar e todos os anos se enganam; nós sabemos quem são, mas temos pena de lhes dizer para não irem a dançar [se é algo que gostam de fazer], e para irem como figurantes. ‘Quer divertir-se? Divirta-se!’”
Zé Pedro diz que a rusga é “bairrismo e orgulho” e lembra que “não é o que apresentam em frente ao júri”. Para ele, “é o trajeto em si, que é visto por milhares de pessoas”, que conta. “As pessoas não estão concentradas só na Avenida dos Aliados; quando a gente está a passar, as pessoas admiram os nossos carros. O ano passado, foi aqui uma guerra porque não queriam ter o cagão da Cascata de São João, mas depois acabámos por levar a cagona, também, e foi o carro que mais êxito teve pela rua fora porque toda a gente achava graça e queria tirar fotografias. Eu acho que isso é que é bonito na rusga, não é só a apresentação perante o júri, é o desfile completo”, conclui.
Share
FB
X
WA
LINK
Relacionados