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Segundo o jornalista inglês Chris Salewicz, os Clash jogavam longas peladinhas num campo em frente ao estúdio em que gravaram o London Calling (1979). “Descobrimo-nos a nós próprios naquela altura, e teve muito que ver com o futebol”, ter-lhe-á dito o guitarrista Mick Jones. Era a maneira de aquecerem antes de tocar, explicou-lhe depois o vocalista Joe Strummer, que costumava coincidir com Paul Cook (The Sex Pistols) e Suggs McPherson (Madness) nas bancadas do estádio do Chelsea, à época a jogar em divisões inferiores, longe das glórias recentes. É que apesar de por vezes associado a modalidades como o skate ou o surf, outrora marginais, ou mesmo a uma cultura anti-desporto, o punk tem uma ligação antiga ao futebol.
O elo – visível também em claques de pendor operário, como a dos alemães do St. Pauli ou a dos espanhóis do Rayo Vallecano – sentiu-se em bandas de várias latitudes nas décadas seguintes. Já nos 2000, os portugueses Clockwork Boys cantaram Fernando Chalana era rock’n’roll e ainda dedicaram temas a Maradona, Paulinho Cascavel ou George Best. Nomes ilustres nos relvados e na boemia, que teriam sido certamente bons convidados do Toque de Letra na Bombonera, projeto de tertúlias portuense “cozinhado” pelo jornalista Pedro Cadima e o seu amigo João Pedro, historiador e criador da página de Facebook Enciclopédia do Desporto em Português.

Sessão com Professor Neca, moderada pelo jornalista Francisco Ferreira | © Foto cedida por Pedro Cadima
As sessões realizam-se desde maio de 2018, “por norma uma vez por mês, mas sem rigidez”, conta Cadima à Agenda Porto. Em cada noite, um antigo futebolista profissional narra momentos da carreira enquanto numa tela de fundo se transmite uma partida marcante. É uma “mistura de nostalgia e histórias de futebol”, sobretudo “histórias mais avariadas, mais inusitadas”, explica o organizador, relatos que se complementam com a busca que há muito faz no seu trabalho diário em jornais desportivos (há três anos n’O Jogo, depois de quase duas décadas n’A Bola).
Pedro diz que no início era mais difícil convencer os convidados, “era preciso fazer uma introdução, explicar direitinho”, mas agora “as coisas tornaram-se mais automatizadas, a malta já conhece”. O pedido mantém-se o mesmo: “que conversem mesmo sem filtros”, porque as conversas são num local fechado, “sem câmaras”, o que garante que “podem estar muito mais à vontade” do que por exemplo numa entrevista ou num evento institucional. Devem participar “sem grande medo do que dizem” e estar preparados para as perguntas do moderador e dos amantes da bola presentes, entre os quais costumam estar alguns jornalistas do setor.
“Há convidados mais desbocados, outros mais cuidadosos”, conta Cadima, a quem custa muito destacar meia dúzia de edições entre as “70 ou 80” já realizadas. “É sempre injusto porque houve muitas que foram fantásticas, mas não duraram tanto ou não tiveram tanta gente”, diz.

Bombonera dedicada a Cabo Verde no Budapeste Ruin Bar | © Foto cedida por Pedro Cadima
Houve também tertúlias com dois ex-futebolistas ao mesmo tempo ou casos em que um jogador acabou por trazer companheiros, como na recente conversa dedicada a Cabo Verde, que em vez do convidado (Marco Soares) acabou por juntar onze jogadores.

Bombonera excecionalmente decorrida em Lisboa, no Grupo dos 9, com Paulo Catarino | © Foto cedida por Pedro Cadima
O tilintar da mesa antes da música
Nos primeiros anos, o Toque de Letra na Bombonera, agora mais conhecido apenas por Bomboneras, realizava-se na Casa da Madeira do Norte. Em 2024 mudou-se para o Praça da Alegria FC e no passado outubro passou também pelo Budapeste Ruin Bar, mas o objetivo é ter “um formato livre daqui para a frente”, que possa “chegar a vários espaços”, adianta Pedro. Planeia também organizar eventos com “diferentes conceitos, mas dentro do mesmo espírito”. É o caso das Bombonera Party People, festas criadas com o fito “de atrair muita gente ao mesmo tempo”, incluindo antigos convidados e outros ex-atletas, que começam com um torneio de matraquilhos de “velhas guardas”.
Qualquer pessoa pode participar nas Matrecadas Infernais, em duplas feitas antes ou na própria festa. “Não há regras”, diz Pedro”. Sugere-se a todos, “sejam antigos jogadores ou público normal, que venham equipados com uma camisola especial para criar um ambiente mais futebolístico”, de preferência que não seja dos emblemas grandes: “peguem nas camisolas do clube onde cresceram, seja de Ermesinde, Lousada, Alpendorada… a ideia é que haja esse cuidado do primeiro clube, do amor local, para que haja o máximo de diversidade”. E assim é possível ver, por exemplo, uma dupla equipada à Beira-Mar e Tirsense em aceso despique com outra que junta Chaves e Varzim, enquanto de fundo estão expostos uniformes históricos “dos 90, dos 80, às vezes até algum mais antigo”.

Bombonera Party People — Carlitos (ex-Gil Vicente ou Benfica) assiste a uma partida em que participa Nélson (antigo jogador de FC Porto, Salgueiros ou Sporting) | © Nuno Miguel Coelho

Bombonera Party People — Pedro Cadima com uma camisola do Grupo Desportivo de Chaves | © Mariana Rollo

Bombonera Party People — quatro das várias camisolas expostas durante o evento | © Mariana Rollo
Pela terceira festa, decorrida a 15 de novembro na Casa do Salgueiros, passaram várias dezenas de pessoas. A tarde incluiu uma conversa sobre o antigo programa da RTP Liga dos Últimos, com participação dos seus repórteres e apresentadores, à excepção de Hernâni Gonçalves, o Professor Bitaites, entretanto falecido. Enquanto se assistia a um best of da série, que chegou a ter mais de milhão de espectadores de audiência num episódio, havia na plateia quem acompanhasse as falas de personagens emblemáticas (Visconde da Apúlia, Vítor do poste, Toneca…) como quem canta um refrão num concerto.

Bombonera Party People — da esquerda para a direita, Ricardo Amorim, Ivo Costa, Álvaro Costa e João Nuno Coelho, quatro dos principais rostos da Liga dos Últimos | © Nuno Miguel Coelho

Bombonera Party People — plateia a assistir na Casa do Salgueiros à conversa-homenagem à Liga dos Últimos | © Mariana Rollo

Bombonera Party People — plateia e convidados a assistir a imagens da Liga dos Últimos | © Nuno Miguel Coelho
“A Liga dos Últimos fez um retrato sociológico único do país”, repetiu João Nuno Coelho, analista de futebol e sociólogo que apresentava uma rúbrica no programa. Ouviram-se também histórias que não chegaram a ir para o ar, como a de um homem que curava doenças com as palmas dos pés ou um caso de zoofilia, e sentiu-se o culto em torno da série, que se enquadra totalmente no ambiente das Bomboneras.
E o punk, também encaixa? Cadima responde: “vejo que esse espírito – que funde o amor ao futebol sem a clubite aguda, sem a gula de só pegar nos [clubes] grandes, indo ao futebol local, indo também àqueles clubes que nos marcaram na primeira divisão e que hoje estão em situações mais difíceis ou ruinosas, portanto, essa ligação de futebol mais de [campeonato] distrital, de segunda e de terceira [divisões], – casa bem com uma música mais acelerada, contestatária e vibrante, que pode ser o punk, pode ser o rock, música rock no seu todo, com uma linguagem às vezes mais agressiva”.
Daí que depois de matrecos e conversas haja concertos a fechar as festas. “São um bocado caprichos pessoais”, diz o jornalista. “Podia fazer as coisas mais facilmente só pelo convívio, mas como gosto muito de música e sempre tive um bocadinho ligado à organização de concertos, tenho alguns contactos do meio das bandas”. Pelo evento passaram já os portuenses 47 de Fevereiro, Ghosts of Port Royal e Candy for Aliens, os compostelanos Samesugas e os barcelenses Doutor Assério.
A melomania de Pedro estende-se também a sets passados em pistas de bares como o Ferro e o Mercedes ou outros fora do Porto. Primeiro sob o alter-ego Vinnie Jones, em homenagem ao irreverente jogador e actor inglês, “casseteiro-mor do futebol”, com uma “música mais violenta e bárbara”, depois com o nome El Loco te Patina el Coco, “mais com tendências exóticas”, como cumbias e outros estilos latinos.

Bombonera Party People — jogo com João Nuno Coelho e os três membros da banda Douto Assério | © Nuno Miguel Coelho

Pedro Cadima no Santuário de Maradona em Nápoles | ©Foto cedida pelo jornalista

Volume 2 do livro de Pedro Cadima | ©Ayumi Shimamoto
Um livro transportado pelas luvas de Higuita
Enquanto se interessa por sons vindos do outro lado do Pacífico, Cadima ouve também o que por lá dizem os relvados: “o universo sul-americano é para mim uma grande inspiração, onde devo muitas histórias assim mais amalucadas”. O jornalista lançou este ano o livro Colômbia, soy loco por ti, publicado em dois volumes pelo grupo editorial Mercador (depois de antes ter sido publicado com o nome Plato y Plomo, apenas no Brasil, pela Corner). É também este um projeto ligado à “memória”.
As primeiras ligações do autor ao futebol cafetero remontam aos jogos a que assistiu em miúdo dos anos Mundiais de 90 e de 94, torneios “marcantes para o futebol colombiano”, em que se apaixonou “pelo génio de Higuita” ou por Valderrama. Anos mais tarde ficou “encantado com o Atlético Nacional”, primeiro clube do país a ganhar a Copa Libertadores (a principal prova de clubes do continente), treinado pelo dentista Francisco Maturana. “Depois a minha vida como jornalista acabou a certa altura por me ligar à busca de histórias e de protagonistas do futebol colombiano”, conta.
Quando chegou a pandemia, como “já tinha alguma base, já tinha contatos”, lançou-se na escrita da publicação, apresentada no passado 25 de novembro na Térmita como “um tributo aos génios e um brinde à loucura”.
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