EN

Quando chegámos ao primeiro piso do edifício da Alfândega, encontrámos a azáfama de uma convenção de técnicos de Recursos Humanos em pleno fervilhar de levantamento de acreditações. Dois enormes portões de ferro maciço, revestidos do tom verde acobreado do velho entreposto comercial, separam essa turba de uma equipa numa atividade mais metódica: conservadores preparam delicadamente objetos artísticos para exposição, enquanto produtores resolvem questões de disposição e instalação.
É nas montagens da exposição “Fluxo. Objetos, Pessoas e Lugares” que encontramos Rui Oliveira Lopes, diretor do Museu das Convergências. Formado em História e Ciências da Arte, muito do seu percurso passou pelo continente asiático, tendo colaborado com o Museu do Palácio Imperial em Taipé e lecionado na Universidade do Brunei entre 2015 e 2024.. Essas são longitudes próximas ao cerne da Coleção Távora Sequeira Pinto — um espólio com mais de 2000 peças e que o colecionador Álvaro Sequeira Pinto colocou em depósito no Museu das Convergências.
A exposição que inaugura no dia 29, sábado, parte de uma pequena seleção da Coleção Távora Sequeira Pinto — mas também de objetos cedidos por comunidades religiosas e artistas contemporâneos da cidade — para explorar “como os objetos circulam entre contextos, adquirem novos significados e testemunham encontros culturais”. A exposição subdivide-se em seis núcleos, nomeadamente “Objetos de passagem”, “Lugares consagrados”, “O sagrado, o espiritual e o religioso”, “Objetos de poder e esplendor”, “Imaginários do lugar” e “Olhares cruzados”. Falámos com o diretor do Museu sobre estas “trocas materiais e relações simbólicas” que cruzam fronteiras e culturas.

© Rui Meireles
Agenda Porto: Como vês o facto desta exposição, o primeiro momento público do Museu das Convergências, acontecer num formato itinerante, fora do espaço do Museu?
Rui Oliveira Lopes: A forma como vejo isso é que esta exposição, no fundo, mostra o caminho que se pretende para o projeto. O Museu das Convergências é um museu singular na sua vocação — não só em Portugal como até mesmo a nível internacional — porque é um museu que parte de um conceito. No caso, o conceito de “convergência”: a ideia de que tudo o que existe, existe numa relação de interdependência com aquilo que o rodeia. Obviamente, é um museu de arte, mas é também um museu que se foca na arte produzida em diálogo com o meio envolvente. Ou seja, a criação artística feita em permanente observação de toda a sua envolvente, e que através disso se transforma e vai ganhando a sua própria singularidade. Portanto, sendo um museu único nesse aspeto, o processo acaba por ser fundamental e convida-nos a fazer parcerias. Além disso, o Museu das Convergências não se limita ao seu edifício — como qualquer museu, existe por si mesmo, e em cada um de nós. E isso foi até o ponto de partida para a ideia desta exposição: uma reflexão sobrea razão pela qual todos nós, ao longo da nossa vida e em diversas circunstâncias, vamos recolhendo e formando a nossa própria coleção de objetos. Nós somos colecionadores por natureza, Esta ideia de recolha existe há milhares de anos, como quando alguém ia pescar e via uma concha — apanhava aquela concha pensando que a poderia transformar num objeto que fosse extraordinário. num outro objeto, tornando-o extraordinário, atribuindo-lhe um novo significado.

© Rui Meireles
AP: E como é que se parte para esta exposição a partir do acervo do Museu das Convergências?
ROL: Quando nós começámos a trabalhar este projeto, a coleção Távora Sequeira Pinto foi matricial. É preciso entender que qualquer coleção do mundo é feita a partir de um olhar sobre um objeto — um olhar que percebe que existe algo extraordinário nesse objeto. E, ao mesmo tempo, percebermos que existem diversas histórias que esse objeto nos conta. Eu gosto muito de fazer o exercício de olhar para um objeto, e pensar no momento em que alguém o idealizou e o criou. E a partir daí, refletir sobre que propósito o objeto vai servir, e que tipo de relação os proprietários tiveram com esse objeto. Por fim, os objetos vão mudando de mãos e vão ganhando histórias e vão acumular valores e significados. Ou seja: por mais que estudemos um objeto e façamos uma arqueologia do conhecimento que há sobre ele, o seu significado hoje nunca será igual ao significado que teve no seu tempo.

© Rui Meireles
AP: E esse significado será diferente também no futuro.
ROL: Exatamente. O próprio André Malraux dizia que “o museu sacraliza o objeto e torna o objeto numa obra de arte”. Os objetos são sempre alvo de uma reinterpretação, portanto o conhecimento que eu tenho sobre qualquer um destes objetos é necessariamente diferente do conhecimento que outra pessoa tem. Cada um de nós desenvolve uma relação experiencial diferente — às vezes mais personalizada, outras vezes menos. É sobre isto que, no fundo, a exposição permite refletir.

© Rui Meireles
AP: Voltando à Coleção Távora Sequeira Pinto, tem objetos de um amplo leque de origens e idades, o que é algo rico para estas leituras transculturais.
ROL: Sim. Como dizia, o Museu das Convergências, a sua definição e o programa museológico estabelecem-se a partir da lógica temática da Coleção Távora Sequeira Pinto.. Este espólio foi reunido ao longo de 40 anos, tem um grande espectro temporal — vai desde a Idade do Ferro, cerca do século XII antes da nossa era, até meados do século XX. Sendo que os objetos do século XX são, no fundo, objetos representativos de identidades tradicionais e que algumas pessoas poderiam definir como sendo objetos etnográficos.
O interesse pelo colecionismo surge, numa primeira instância, porque o colecionador tem uma relação muito forte com a Índia, porque o avô foi militar em Goa e ajudante de campo do Governador Francisco Higino Craveiro Lopes. Quando os avós e a mãe voltaram para Portugal, trouxeram mobiliário feito na Índia e muitos outros objetos de vários lugares da Ásia, e, portanto, o colecionador cresceu com essa proximidade muito enraizada a esse tipo de objetos. Naturalmente, o colecionador desenvolveu um interesse muito grande sobre o impacto que a expansão portuguesa e as navegações marítimas dos portugueses tiveram no mundo. Aqui não necessariamente na ideia de um império construído, mas numa ideia de difusão de conhecimento, porque é a partir dessa abertura de Portugal e da Europa ao mundo que passamos a ter um conhecimento amplo sobre as coisas do mundo: sobre a ciência, a náutica, a botânica, a geografia.
É esse efeito transformativo que foi sempre inspirador para o colecionador, e que parte precisamente dessa ideia de um objeto enquanto representação de um macrocosmos, do conhecimento e das culturas do mundo. Seja esse objeto de uma expressão artística mais sofisticada ou menos sofisticada, mas reconhecendo o grande virtuosismo artístico, técnico, que existiu e existe em culturas não-europeias. Isto é algo que ainda nos dias de hoje representa uma dificuldade — vemos que só nos últimos anos é que nas grandes bienais de arte contemporânea é possível encontrar artistas de "outras" geografias. Só nas últimas décadas é que os artistas da Arábia Saudita e, de uma forma mais lata, do Médio Oriente, estão a ser representados nos grandes museus de arte e nas grandes bienais. Isto é também na senda da ideia de um mundo mais globalizado, obviamente, e aberto, em que nós começamos a entender as lógicas artísticas de outras culturas que não são as mesmas do ocidente.

© Rui Meireles
AP: Esta exposição terá também um longo programa paralelo. O que é que nos podes dizer sobre isso?
ROL: Esta exposição não foi feita para ser uma antevisão daquilo que é o Museu dos Convergências, daquilo que vamos mostrar quando abrirmos o museu. Mas é, sobretudo, a afirmação de uma abordagem museológica, programática. E inclui-se aí a ideia que toda a programação paralela acaba por ser tanto ou mais importante do que a exposição em si. Encaramos o trabalho de mediação e educação como fundamental. A acessibilidade intelectual e cultural é tão urgente nos museus como a acessibilidade física. Vamos ter programação destinada às escolas, sobretudo visitas orientadas. Também vamos ter oficinas artísticas para crianças e famílias, uma oficina de escrita criativa em que os participantes vão dialogar com os objetos da exposição, e com objetos da sua própria coleção — os seus objetos pessoais. Haverá um ciclo de conferências, e vai também existir também alguma programação em colaboração com as comunidades religiosas que nos cederam alguns objetos, e que assim terão a oportunidade de falarem em discurso direto sobre os objetos relevantes para as suas próprias práticas religiosas.

© Rui Meireles

© Rui Meireles
Share
FB
X
WA
LINK
Relacionados

Free
Exhibition