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Ensaio do grupo de teatro "Do Lado de Fora" © Inês Aleixo
Dentre tudo o que possuímos, o tempo será, talvez, o bem mais valioso. Irrecuperável, insubstituível, o tempo mede-se em escolhas: como o usamos e a quem o dedicamos. Há quem opte por oferecê-lo – sem esperar nada em troca – a causas e projetos sociais e comunitários. É o caso de Isabel Mendes e de Isabel Natário, voluntárias na Nuvem Vitória e na Coração na Rua, respetivamente, que, com o tempo que dão, operam pequenas mudanças na vida de outras pessoas, inspiram a comunidade e lembram-nos que a partilha é o que há de mais precioso na humanidade. E é, também, o caso de Rui Spranger, diretor artístico da Apuro – Associação Cultural e Filantrópica e do grupo de teatro “Do Lado de Fora”, um projeto que promove a inclusão através da arte, que fomos conhecer, e cujos membros dizem que são "uma grande família”.
Estelle Gonçalves e Isabel Mendes da Nuvem Vitória © Inês Aleixo
Todas as noites, entre as 20h00 e as 22h00, as crianças e os jovens internados na ala pediátrica do Hospital de São João recebem visitas especiais: são os voluntários da Nuvem Vitória que vão contar histórias de embalar. “Será que hoje os enfermeiros também têm direito a uma história?”, pergunta, em tom de brincadeira, uma enfermeira de serviço a uma equipa de oito voluntários que acaba de chegar, e que a Agenda Porto acompanhou. Entre eles está Isabel Mendes, voluntária há já seis anos nesta associação que opera em 11 hospitais do país, e que iniciou a sua atividade no Porto em 2017.
Isabel fez cerca de uma hora de viagem desde Paços de Ferreira para vir contar histórias. Psicóloga de formação, trabalha há 38 anos no município daquele concelho, onde é responsável pelo Serviço Educativo da biblioteca. Foi “num dia de muito nevoeiro profissional” que abriu a caixa de email e leu uma mensagem de uma amiga que a desafiava a juntar-se a esta associação como voluntária. “Eu tinha vontade de fazer voluntariado, e já tinha tido outras propostas para colaborar com outras entidades, mas nunca tinha sentido o apelo”, conta. Quando leu a descrição do projeto, decidiu inscrever-se. “Não hesitei, fui de cabeça.” Depois de ter tido formação, a sua primeira ação, recorda, foi a 16 de abril de 2018. Quando começou eram cerca de 60 voluntários no “Joãozinho”. Hoje são 135.
Neste projeto de voluntariado, os contadores de histórias são escalados de acordo com a sua disponibilidade mensal, e trabalham em duplas formadas aleatoriamente pela plataforma interna. A cada noite, oito voluntários percorrem as unidades de cirurgia, de queimados e de oncologia distribuídas pelos dois pisos da ala pediátrica do São João; as duplas começam em cada uma das pontas. Antes de iniciarem as rondas, é feito um briefing com os enfermeiros de serviço para se inteirarem do estado de cada utente e avaliarem o tipo de abordagem; ficam a saber se devem ou não entrar nas enfermarias (por exemplo, se uma criança acabou de sair de um tratamento de quimioterapia) ou se há situações que exigem que se equipem. “Vamos mascarar-nos antes de te contar uma história”, brincam com uma menina em situação de isolamento, que sorri.
Há crianças que já conhecem bem “as nuvens” e aguardam, ansiosas, pela sua chegada. Algumas ficam de vigia à porta do quarto à espera da sua vez de ouvir uma história. É o caso de Martim, de oito anos, que nos recebe com um sorriso traquina. “Se tudo correr bem, termino o antibiótico na terça-feira e na quarta vou-me embora”, conta-nos, bem-disposto.
Antes de interagirem com as crianças, as duplas pedem sempre permissão aos adultos acompanhantes, mas Martim nem espera pela resposta da mãe e diz prontamente que “autoriza”. No entanto, tem um pedido especial; não quer ouvir histórias, quer que lhe contem piadas. Calha a Margarida Soares, coordenadora da equipa do Porto da Nuvem Vitória, contar algumas piadas e adivinhas com o auxílio de um livro que traz no seu saco.
Briefing com os voluntários da Nuvem Vitória
“As histórias transformam vidas e podem ajudar-nos em muitas situações.”
Também no saco de Isabel Mendes há sempre um livro de piadas e anedotas porque, diz, “é eficaz” para arrancar sorrisos aos mais graúdos. A caixinha de música para os bebés e livros pop-up para os mais pequenos são outros dos objetos que andam sempre consigo.
Segundo Isabel, este serviço de voluntariado fez com que “relativizasse os problemas da vida”, e o mais gratificante, diz, são “os sorrisos que leva para casa”. Não só das crianças e dos jovens, mas também dos familiares que os acompanham durante o internamento e que se emocionam com as histórias que lhes conta. “Temos sempre de ter cuidado com a seleção de histórias que levamos, pois estamos perante crianças vulneráveis, não vamos levar histórias tristes. Levamos, sobretudo, histórias de esperança”. E defende: “As histórias transformam vidas e podem ajudar-nos em muitas situações.”
Isabel Mendes © Inês Aleixo
A paixão por contar histórias e por literatura infantil (que, diz, “é para toda a gente”) fez com que também ela se aventurasse na escrita. “O menino que queria apanhar as nuvens” é o título do livro de que é autora. Perguntamos-lhe o que significa fazer voluntariado. “É dar o meu tempo e sentir que, com isso, recebo sempre mais do que dou. Achava que não tinha tempo para nada, mas afinal encontro tempo”, afirma. “Eu estou no sítio certo a fazer voluntariado.”
Voluntários da Nuvem Vitória © Inês Aleixo
Sabe mais sobre a Nuvem Vitória em nuvemvitoria.pt.
Partilhar é uma das palavras de ordem de Isabel Natário. Educadora de infância no Agrupamento de Escolas Diogo de Macedo, em Gaia, consegue arranjar tempo para abraçar vários projetos e causas. Ajudar os outros é, diz, “um vício muito bom”. Um dos projetos de que faz parte, há três anos, é a Coração na Rua, uma associação de solidariedade que tem a missão de “tornar as noites do Porto mais quentes, despertar consciências e ajudar quem precisa”.
Marcamos encontro com Isabel numa rua que conhece bem: Gonçalo Cristóvão é um dos locais onde esta associação presta apoio a pessoas em situações de vulnerabilidade. De 15 em 15 dias, aos sábados, a partir das 19h30, um grupo de voluntários oferece uma refeição quente, alimentos e outros bens de primeira necessidade a quem mais precisa.
O voluntariado surgiu na sua vida há quase três décadas quando começou a colaborar com o Movimento EMAUS. “Eu vou sendo simpatizante das causas”, conta. No EMAUS, chegou a ser conhecida como “a senhora das rabanadas”. Pelo Natal, fazia cerca de uma centena de rabanadas para que os utentes desta instituição tivessem esta iguaria à mesa da consoada. Esta é “uma tradição” que se tem esforçado por manter ao longo dos anos, e, todos os natais, continua a fazer rabanadas para os utentes do EMAUS e agora também para os utentes da Coração na Rua.
Isabel Natário © Inês Aleixo
Nos sábados em que tem ação no exterior, a Coração na Rua divide-se em duas equipas; uma vai distribuir uma refeição e “um kit do dia seguinte” a cerca de 45 pessoas que estão espalhadas “um pouco por toda a cidade”. Esta equipa “faz uma grande volta” para chegar a estas pessoas “que não saem do seu quadradinho, da zona onde vivem”. A equipa que fica em Gonçalo Cristóvão presta apoio a mais de meia centena de pessoas em situação de sem-abrigo, mas também a “pessoas idosas cuja reforma não chega, que dormem em quartinhos ou têm a sua casinha, mas estão sozinhas, e não têm família”. Esta voluntária refere que o número de pessoas que procura a ajuda da Coração na Rua tem vindo a aumentar, “e são sobretudo emigrantes; muitos marroquinos, argelinos e tunisinos”.
Foi numa das rondas noturnas da Coração da Rua, em outubro do ano passado, que conheceu dois dos sete emigrantes marroquinos que ajudou a ‘tirar da rua’ e que hoje lhe chamam “mãe”. Por isso, Isabel emociona-se a contar esta “história muito bonita” de que se orgulha: “Numa noite de muito mau tempo, apareceram aqui, todos molhados, a pedir um sítio para dormir. Tentámos em albergues, mas não havia vagas, e acabaram por ir dormir para Campanhã. Entretanto, encontraram-se com mais dois amigos com quem tinham estado noutro país europeu, onde trabalhavam em quintas, mas, devido a uma busca, tiveram de fugir, e reencontraram-se aqui.”
Isabel e o marido, “com a ajuda de muitos amigos”, conseguiram pagar-lhes alojamento durante um mês num hostel na rua 31 de Janeiro. “Eu brincava: ‘eu nunca vivi no Porto e vocês já podem dizer que sim’”, conta, a rir. Entretanto, mudaram-se para Gaia, e Isabel conseguiu arranjar-lhes trabalho numa empresa de construção civil. A estes quatro juntaram-se mais três. “Há muitas pessoas que se aproveitam deles, com contratos falaciosos, e eles são explorados e enganados”. Hoje, todos eles têm contratos de trabalho e de arrendamento e em novembro começaram um curso de português.
Isabel Natário © Inês Aleixo
Isabel abre o porta-bagagem que vem cheio de peças de vestuário e sapatos que em breve vão ter novos donos. “Estas roupas vêm de todos os cantos, vêm de colegas que trabalham comigo na escola”, conta. As roupas de bebé e de criança vão ser doadas ao Lar Luísa Canavarro - Comunidade de Inserção, uma instituição educativa que acolhe adolescentes e jovens grávidas ou mães com os seus filhos em situação de vulnerabilidade. Através do passa-a-palavra, esta voluntária diz que consegue sensibilizar um grande número de pessoas para apoiar as suas causas, criando verdadeiras correntes de interajuda. “O que é mais engraçado é que se cria uma rede tão especial, ajudar é fácil”, defende.
Além das causas sociais, Isabel abraça também causas ambientais. Enquanto educadora de infância, trabalha com as crianças temas ligados à conservação da Natureza, e acabou por interessar-se pelo priolo, uma ave endémica dos Açores, que já esteve em risco de extinção. Através de várias iniciativas com os seus alunos, contribuiu para a campanha de preservação desta pequena ave, mas também da tintureira (tubarão-azul), uma espécie ameaçada que, graças a várias ações, deixou de ser servida nas cantinas das escolas de Gaia. “É isto que temos de semear nos pequeninos”, sublinha.
“Somos apenas ‘uma gota no oceano’, mas uma gotinha com outra gotinha e outra gotinha fazem uma pocinha de maré onde é possível haver biodiversidade (…) e começamos mesmo a mudar as coisas”, defende. “O importante é importarmo-nos com os outros, e não ficarmos angustiados só com o mal que acontece. Podemos tentar fazer alguma coisa para que as coisas realmente mudem; pode ser pouquinho, mas pode fazer a diferença”, remata.
Sabe mais sobre a Coração na Rua em coracaonarua.pt.
Tiago Ribeiro e Emílio Costa do "Do Lado de Fora" © Inês Aleixo
“A gente sabe que vai errar, não somos atores profissionais, mas há sempre um que bota a mão, que ajuda, e isso faz com que isto não seja só uma companhia; somos uma família.” Emílio Costa faz parte do grupo de teatro “Do Lado de Fora” desde que foi criado, em dezembro de 2022. Trata-se de um projeto da associação cultural e filantrópica Apuro que dá continuidade a um projeto de integração através da arte, focado em pessoas em situação de sem-abrigo e de exclusão social.
É às segundas e terças-feiras, entre as 18h e as 20h, que o “Do Lado de Fora” ensaia na Casa D’Artes do Bonfim. A Agenda Porto foi assistir a um ensaio do espetáculo que vai estrear no próximo ano, e aproveitou o intervalo para estar à conversa com o grupo.
Os ensaios costumavam acontecer entre as 15h e as 17h, mas foi necessário alterar o horário porque, entretanto, “houve gente aqui que começou a integrar-se no mercado de trabalho”. “Agora também perdemos um elemento que era ótimo, porque arranjou trabalho e está com um horário que não permite; isso implicaria estarmos a transferir os ensaios demasiado para a noite”, explica o diretor artístico, Rui Spranger.
“Quando chega o dia do ensaio estou sempre preocupado em chegar a horas”, admite Emílio. “Estou a levar isto a sério, mas não tenho conseguido acompanhar a pedalada deles. Não tenho formação de teatro; tenho formação da rua”, conta. “Em duas palavras vou dizer tudo: o teatro e esta companhia mudaram a minha vida. Devido à Apuro, sou um ser humano diferente; por exemplo, não dava o lugar a ninguém no autocarro e no metro, e hoje sou o primeiro a dar, graças àquilo que aprendi como ser humano aqui no teatro.”
Já com vários espetáculos no currículo, faz questão de apontar as mudanças operadas pelo teatro: “Quando este projeto começou, praticamente ninguém trabalhava. Hoje, o único malandro que está aqui sou eu, os outros estão a fazer formação ou a trabalhar”, diz, com um sorriso ladino. Todos riem. “O importante disto tudo aqui é que a autoestima está toda lá em cima, praticamente todos eles trabalham ou fazem formação”, sublinha.
Vilma, que também está no grupo desde a formação inicial, corrobora: “O teatro tem-me levantado a autoestima, e graças ao teatro posso dizer que arranjei emprego, porque eu era uma pessoa muito fechada, e é uma forma de me exprimir. Tinha vergonha de mim e de me expor numa entrevista de emprego.”
Já Maria Alice, um dos elementos mais recentes, sublinha a criação de “laços de amizade e de afeto”. “Estou a recuperar de uma situação psicológica, mas sinto uma força para encontrar um rumo diferente; estou a gostar de aprender técnicas que me ajudam a conhecer-me e a estruturar-me como pessoa.”
Joana, de 25 anos, o elemento mais jovem, conta que sempre foi “muito envergonhada”. “No ‘Do Lado de Fora’ não tenho vergonha de ser eu e acho que esse é o ponto de partida para ser outra coisa, para fazer teatro, que sempre quis fazer”, diz.
Maria Alice do "Do Lado de Fora" © Inês Aleixo
Rui Spranger, diretor artístico da Apuro © Inês Aleixo
A cultura e a solidariedade “sempre estiveram na base” da Apuro, uma associação que “surgiu durante a crise de 2009, embora só tenha iniciado atividade em 2013, com o objetivo de apoiar os intermitentes de espetáculo”, como conta Rui Spranger. Desde então, tem vindo a trabalhar com pessoas em situação de sem abrigo, através da participação na plataforma “Vozes do Silêncio” e no “Eixo 4 – Participação e Cidadania” dos Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) do Porto.
Pode dizer-se que a génese de “Do Lado de Fora” foi o projeto SOmOS, da Câmara Municipal do Porto, no âmbito do programa AIIA - Abordagens Integradas para a Inclusão Ativa, dirigido à população em situação de sem-abrigo e a pessoas em situação de vulnerabilidade social, que contou com a coordenação artística da Apuro. O projeto consistiu em três oficinas de criação artística, cada uma com a duração de quatro meses, envolvendo as associações Saber Compreender e a PELE. Estas oficinas resultaram num espetáculo intitulado “É!”, que estreou, com sucesso, em junho de 2022, no Teatro Campo Alegre, e que deu origem, seis meses depois, ao grupo de teatro “Do Lado de Fora”.
Tratou-se de “um espetáculo de biodrama e de teatro documental”, refere Spranger. “Interessava-nos trabalhar os sonhos da infância e os sonhos de agora, interessava-nos o lado positivo e o lado negativo da assistência social; é um espetáculo de combate ao estigma e um espetáculo de humanização”, defende. E desenvolve: “Aqui, temos o conceito de trabalhar para fora e trabalhar para dentro. Agora, estamos a trabalhar para dentro, nesta perspetiva em que temos um desafio artístico maior com este espetáculo, em que estamos a trabalhar teatro físico e clown.”
“Do Lado de Fora” é um coletivo aberto a todos. “Qualquer pessoa pode juntar-se”, frisa o diretor artístico. Foi o caso de Tiago Ribeiro, um jovem ator e encenador que participa de forma voluntária no grupo, tendo, inclusive, desafiado alguns elementos para participar no espetáculo “Isto não é um show”, da associação cultural Formiga no Casulo, que esteve em cena, em novembro, no Teatro Helena Sá e Costa.
Recém-chegado ao “Do Lado de Fora”, Tiago afirma que “sentiu que tinha muito a aprender com eles, mais a aprender do que a ensinar”. “Eu tinha o lado do teatro e faltava um pouco de vida, e esta gente tem isso. O que acontece em palco é apenas a tradução de todos os anos que eles têm para trás”, afirma.
Maria Alice aproveita para dizer que, para ela, o teatro “funciona muito como terapia, embora tenha os profissionais da área para a apoiar”, salientando que o trabalho que o Tiago desenvolveu com o grupo foi “bastante terapêutico”.
A estreia do próximo espetáculo está marcada para 20 de fevereiro, no Teatro Campo Alegre, e conta com o apoio da Câmara Municipal do Porto e da Junta de Freguesia do Bonfim.
“’Do Lado de Fora’ parte de uma vontade nossa. Estivemos a trabalhar mais de um ano sem financiamento, que só veio este ano; portanto, há muito trabalho voluntário”, refere o diretor artístico. “Estamos em risco de a partir de março do próximo ano não termos financiamento, mas continuaremos a trabalhar. Há vontade de continuar independentemente das condições.”
"Do Lado de Fora" © Inês Aleixo
Sabe mais sobre “Do Lado de Fora” em apuro.pt
por Gina Macedo
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