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A tradicional travessia pela cidade a pé, encetada a partir de uma colina à escolha e com um desígnio otimista de chegar – pela manhãzinha – à Foz, só sobrevive com pequenos portos de abrigo que ajudem a refrescar e atestar energia. Para lá das festas organizadas pelas freguesias, e os grandes palcos municipais, as festas dos bairros são as pequenas capelas destas peregrinações. Falámos com três associações que fazem do São João a sua festa local: no Bairro da Bouça, na Rua de Anselmo Braamcamp e na Rua Escura.
Rua de Anselmo Braamcamp
Associação Paredes-Meias
A relação entre vizinhos na Rua de Anselmo Braamcamp não escapava à norma: um cumprimento quando se cruzavam duas caras mais ou menos familiares, e ambos seguiam as suas vidas paralelas, mas em 2016 um evento trágico aproximou toda a rua – um incêndio alastrou e destruiu três casas, com duas pessoas a perderem a vida.
Além da impotência sentida perante um evento destes, havia o reconhecimento da estranheza de pessoas que viviam a sua vida a paredes-meias e, no entanto, não faziam mais do que trocar um breve cumprimento. Assim, um grupo de vizinhos juntou-se para promover um jantar de apoio ao morador sobrevivente, apoiando-o para que não desistisse de recuperar a casa, e regressar ao bairro. Pouco tempo depois, uma vizinha deixava nas caixas de correio da rua um convite: celebrava-se em breve o Dia Internacional do Vizinho, e estavam todos convidados para participar num almoço na rua.
Joana Almendra, Dona Esmeralda, Inês Mariana Moitas e António Guedes © Ana Caldeira
Esta aproximação continua de forma gradual – atingindo um ponto sem retorno quando o realizador Saguenail e a escritora Regina Guimarães, ambos ali moradores, montaram a projeção de um filme gravado nos anos 70 na Rua de Anselmo Braamcamp. A partir daí, os eventos sucederam-se: dos encontros informais no café da esquina, às refeições partilhadas, e até mesmo à formação de um grupo coral.
Há cerca de três anos que organizam as festas de São João no bairro, tendo no ano passado constituído formalmente uma associação. Aqui, trata-se de celebrações íntimas, mas em que toda a gente é bem-vinda. Começam pela tarde, com animação de DJ, e apenas há um pequeno balcão para venda de água e outras bebidas essenciais. Hoje, os moradores já não conseguem conceber um São João de outra forma, uma vez que é um ambiente seguro para as crianças das várias famílias.
© Rosa Guedes
Rua Escura
Associação Azul d’Eleição
Maria João Mendes e Paula Mendes, © Rui Meireles
As festas da Rua Escura nem são recentes, nem acontecem apenas no São João. Nos meses de maior calor, quando é certo que a chuva não vai estragar a alegria, é montado um pequeno palco para animação que vai de DJs a noites de fados. É no local de todas as celebrações, em frente ao edifício da antiga Câmara Municipal e à sombra do que resta da face norte da muralha primitiva da cidade, que encontramos as bancas de venda de Maria João Mendes e Paula Mendes – mas como na Sé não se usam apelidos, mas antes alcunhas, temos de clarificar que estamos a falar da “Maria Preta” e da “Paula do Marco”.
A novidade este ano é, então, que as festas da Rua Escura acontecem com o cunho da Associação Azul d’Eleição, à qual Maria João e Paula pertencem. A razão para a sua criação é simples: “se não fazemos festa, algumas pessoas reclamam, mas se fazemos, reclamam outras – e chamam a polícia! Assim, a conselho do nosso presidente de Junta, fizemos a associação para tudo ser organizado com as devidas licenças”, explica Maria João.
Enquanto falamos sobre o que terá lugar neste São João, algum turista curioso vai revendo os lencinhos bordados que estão à venda. Sem deixar de ir fechando negócio (conduzido inteiramente em português, porque afinal é em Portugal que o turista se encontra), Paula conta-nos das noites de fado que organizavam no edifício junto à muralha: “chamávamos-lhe a Varanda da Saudade. Enchíamos a rua! Mas agora o edifício foi vendido, faz-se tudo aqui no passeio”.
Mas voltando à festa sanjoanina, Maria João promete do melhor: “a animação vai ser do Valter Lopes, é o mesmo [artista] do ano passado. Quando ele tocou a primeira vez aqui, há três anos, ninguém o conhecia, mas agora já nem queremos mais ninguém. Hoje até podia aparecer-me aqui o Marante a pedir para ser ele a tocar, e eu mantinha-me fiel ao Valter Lopes.” Questionada sobre se haverá bebida e comida no local para os visitantes de outras zonas da cidade, Maria João tranquiliza-nos: “vai haver aqui tudo o que precisarem. Até vamos ter aqui umas bailarinas para vocês lavarem os olhinhos!”
Festas na Rua Escura em 2024, © Maria João Mendes
Bairro da Bouça
Comissão de Festas
A vida no Bairro da Bouça, concebido pelo arquiteto Álvaro Siza, passa-se entre o recato e a projeção. Apesar das visitas guiadas e reportagens frequentes que a obra do Serviço de Apoio Ambulatório Local atrai (como, por exemplo, a reportagem fotográfica que a Agenda Porto conduziu em abril), a vida quotidiana decorre com bastante normalidade – contribuindo, também, para isso um enorme muro que protege a privacidade dos moradores de uma estação de metro que lhes é quase contígua.
Mas há outro momento que transforma este bairro discreto num espaço densamente público: as celebrações de São João aqui atraem cada vez mais visitantes, tornando-se uma etapa incontornável para muitos. Quem organiza estas festas são moradores do bairro, tendo constituído uma Comissão de Festas inteiramente dedicada a este propósito – esta é mais uma entidade que navega a vida do bairro junto a duas outras organizações essenciais: a Associação de Moradores da Bouça, que junta moradores nas ruas de toda a Bouça; e a Cooperativa das Águas Férreas, responsável pela manutenção do Bairro da Bouça e pela conclusão das obras deste projeto.
António Santos, Nuno Alves e Tiago Correia © Rui Meireles
António Santos e Nuno Alves pertencem a esta comissão que surgiu com a menor das provocações – António recorda que já se faziam algumas festas, mas “notava-se que faltavam algumas condições”. “Como era possível fazer uma festa em condições com uma senhora de 80 anos a comer sardinhas em pé?” Assim, inicia-se o processo de formação da comissão, responsável pela coleta de cotizações que pretendiam munir o espaço de bancos, mesas, decorações, e equipamento de som.
Hoje, veem o sucesso das festas no seu bairro com alguma incredulidade – Nuno assume que “não andamos a colar cartazes nem a divulgar a festa, precisamente para manter um clima familiar e tranquilo destas celebrações”. Contudo, o magnetismo que o bairro exerce nos outros dias do ano atinge o pico no dia de São João, e, ainda assim, o clima familiar permanece intacto. “Mesmo antes do São João, enquanto montamos as decorações, já se pré-aquecem as colunas com alguma música e o bairro vai-se juntando num ambiente festivo.”
Junta-se pouco depois à conversa Tiago Correia – porque, afinal, toda a comissão de festas mora logo ali ao lado – que acrescenta que “não há exatamente planos para crescer”. “Gostamos da festa como ela está, e claramente o resto da cidade também. Tentamos apenas incutir algum gosto na organização aos miúdos, que é a única coisa que falta para esta festa perdurar por um longo tempo.”
Festas de São João na Bouça em 2023, © Gina Macedo
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