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Entrevista de perfil
“As pessoas estão a ser amestradas para o seu pior”
Entrevistas
Falámos com Samuel Úria dias antes da sua estreia em nome próprio no Coliseu do Porto. A 17 de outubro, o músico traz à cidade o espetáculo 2000 A.D, título do seu mais recente disco.
Samuel Úria

AGENDA PORTO: Para o concerto no Coliseu do Porto também vais trazer o autocarro de amigos que juntaste no passado sábado em Lisboa? 


SAMUEL ÚRIA: É quase literal, vai um autocarro cheio de gente que são os meus convidados especiais. Não vou querer privar o Porto daquilo que aconteceu em Lisboa, até porque algumas das referências que vão estar comigo são referências mais nortenhas do que propriamente sulistas. Não faria sentido eu chegar ao Porto sem eles, que são meus amigos, mas são grandes referências musicais também no Norte. 


Virá algum convidado que não esteve no Coliseu de Lisboa? 


Ainda não está programado, mas não excluo isso. 


Dez álbuns de estúdio depois – e pondo de lado a tua natural evolução técnica e estética como compositor –, as músicas ainda te vêm do mesmo lugar que vinham nos 2000? 


Acho que sim, até porque normalmente os meus exercícios para me desbloquear tem que ver com eu anular tudo aquilo em que meu presente se tornou, um presente que eu associo muito a viver em Lisboa, a viver um bocado no meio de alguma confusão, com o tempo a sobrar para menos coisas. Então, para conseguir escrever com a mesma fluidez com que fazia em 2000 [tinha então 20 anos], com aquela escrita de juventude que é muito voraz, que quer muito que as coisas aconteçam rapidamente, eu tenho que me isolar o mais possível. E esse isolamento tem muito que ver com o meu passado. Cresci numa cidade muito pequena e numa casa grande, em que eu não via os meus pais, não via ninguém da família durante o dia inteiro. Por isso acho que o meu processo de escrita tem mesmo que se basear nessa apetência, e para ter a apetência original tenho que reproduzir também da forma mais fiel possível o ambiente isolado e tranquilo original em que eu compunha. 


Quando escrevem sobre ti referem com frequência essas tuas origens. Sabemos que as assumes com gosto, como acabas de fazer, mas também não te vemos a andar por aí com uma bandeira de Tondela a toda a hora. Achas que na insistência dessa menção há algo de paternalismo? Um paternalismo urbano?


Sim, sabes que ser de Tondela há 15 anos, quando comecei a dar as minhas primeiras entrevistas e a falar para a imprensa, era um elemento quase de exotismo. E eu aproveitei isso, quase de uma forma irónica, sem nunca o assumir, ou às vezes até com uma pontinha de sarcasmo. Quase que simulava, ou simulava mesmo, por pirraça, essa ideia de que “pá, coitadinho de mim, cresci no Portugal isolado, e mesmo assim consegui estar aqui ao pé dos outros todos”, como se fosse um trajeto de uma progressão inacreditável, um conto de fadas, o rato do campo que troca os papéis com o rato da cidade. E, nesse sentido, Tondela acabou por se tornar uma espécie de emblema muito colado a tudo o que fazia parte da imprensa em torno a mim.

Mas eu continuo a falar de Tondela - para além, obviamente, dessa simulação que eu concedia - com orgulho. Porque embora o meu trajeto musical seja todo feito de forma profissional na urbe, na cidade, sobretudo em Lisboa e muito centralizado, o meu crescimento musical é feito em Tondela. Então, para mim, é muito difícil falar do processo atual, como há bocado estava a responder, sem remontar a essas memórias e a esse ambiente ideal, idílico às vezes até, no qual não só fui formado musicalmente, mas também onde me formei enquanto escritor de canções. E, assim, Tondela acaba por estar presente - embora não viva lá há mais de 20 anos - na minha construção enquanto pessoa, mas também enquanto músico, porque continuo a procurar não só aquela simplicidade, como também a alegria de poder estar lá a assistir a concertos que eram sempre um motivo especial, de celebração, que congregavam toda a terra. E a maneira como eu me identifico em palco também é querer que as pessoas sintam isso. Claro que é um pensamento desejoso, mas mesmo essa minha vontade remonta àquilo que me foi fornecido enquanto tondelense, não enquanto português, seguramente não enquanto lisboeta, e também não enquanto uma pessoa que cresceu num determinado período de tempo. Tem que ver com a geografia mais do que com a cronologia.


Então consideras-te a figura mais relevante da Beira da atualidade a seguir ao Bruno Aleixo? [risos]


[risos] Não me considero isso. Até porque, felizmente, Tondela acaba por ser mais falada nos últimos 10 anos por causa do futebol do que em torno a mim. E ainda bem que assim é. E há também o Filipe Melo, que não sendo um tondelense é alguém que passa lá muito mais tempo do que eu,  tem lá uma casa de família antiga. Esse sim, é um ilustre tondelense, ainda que de adoção (claro que ele tem ancestralidade que também vai ali parar). Curiosamente, a minha relação com Tondela nos últimos anos tem sido ir visitar o Filipe Melo, mais até do que visitar amigos ou familiares que são de lá. 

Samuel Úria
Samuel Úria

Concerto de Samuel Úria na apresentação do programa do Cultura em Expansão deste ano, a 18 de junho. © Sérgio Monteiro

Foi um longo caminho desde que, em 2009, gravaste o primeiro disco em casa, num único dia e em directo, com os teus espectadores a enviarem sugestões por email (algo muito boomer!), até actuares em nome próprio nos Coliseus. Sentes-te com um pé na produção independente e outro no mainstream, ou isto não faz sentido?


Não é propriamente uma preocupação, claro que agora cada vez que eu estou a preparar um disco já o faço antevendo uma data de questões técnicas, de produção, estéticas também, que têm que ver com uma profissionalização. Mas isso também tem que ver com o facto de eu, de repente, estar a trabalhar com uma agência, com management, com uma equipa de músicos que não estão absolutamente dependentes de mim, mas que de alguma forma têm alguma dependência daquilo que eu faço. O que também muda as minhas preocupações em torno da música, que estão desligadas desse passado. Mas continuo a fazer música de forma independente, ou seja, o meu último disco foi lançado por mim próprio e é um disco independente. Mantenho o pé nesse passado, sabendo que se algum dia me der na cabeça para voltar a fazer, não um número de circo como esse foi, um número de Big Brother, mas um disco absurdamente e absolutamente despojado de qualquer meio técnico mais profissional, se quiser fazer as canções que me surjam cinco segundos antes de começar a gravar, se quiser fazer um disco de improvisos, sei que pode ser um disco estranho para muita gente, mas também sei que para quem me segue há mais tempo não será uma carta fora do baralho. Ou seja, não será um passo absolutamente estranho, considerando aquilo que é o meu passado e até considerando aquilo que é o meu presente. Embora a minha música seja mais – vou usar um adjetivo ridículo – “compostinha”, continua a ter traços que, embora não façam parte do instrumental nem da melodia, são completamente desarraigados daquilo que é o mainstream. E, às vezes, detalhes ou palavras que eu escolho podem justificar depois sons, como bater canos na casa de banho ou filmar o meu vizinho a arrotar e usar isso como um fundo sonoro. Portanto, não será estranho porque eu já reproduzi isso de alguma forma, ou de forma simbólica também no tipo de letras que escolho ou nas temáticas.


És talvez o músico com maior alcance (como se diz nas redes) da geração da Flor Caveira e da Amor Fúria. Agora, com a distância de mais de 15 anos, como olhas para essa segunda explosão do pop-rock cantado em português?


Acho que é daquelas coisas em que, se calhar, ponho a modéstia de lado e consigo ver-me como uma figura que fez parte do processo ou, pelo menos, que não está necessariamente na proa, mas faz parte de uma primeira leva que recupera o português nesse pop-rock. E vejo isso com orgulho, porque em muitos dos meus descendentes – e estou a falar sem me dar importância e sem paternalismo, só porque sou mais velho, refiro-me a muitas das bandas de gerações a seguir à minha, que começaram também a fazer as coisas diretamente para português –, há quem escreva um português no qual eu não me revejo, mas há outros que eu acho que são mesmo belíssimos escritores de canções… 


Quem, por exemplo? 


Hmm, estava a falar de alguém que não é meu contemporâneo de idade, mas que começou na mesma altura que eu a fazer música de uma forma mais sistemática… sei lá, o Luís Severo, a Bia Maria, foram nomes que me apareceram agora muito rapidamente, mas sem a pressão de dizer nomes, diria muitos mais. São nomes que acho que estão a fazer as coisas muito bem feitas, com a sensibilidade certa, com o português certo, seja lá o que isso for, mas que quando eu ouço, soa-me acertado. E embora eu não tenha qualquer tipo de pretensão de ter legitimado aquilo que eles fazem, faço parte de um grupo de pessoas que pelo menos abriu as portas, ou abriu os ouvidos de uma audiência mais generalizada, para esse fenómeno que é escrever em português música que nem sempre tem a sua génese histórica musical em Portugal. Isso é uma coisa que me deixa muito contente, porque esse cruzar de fronteiras é uma coisa que sempre aconteceu na música, mas abandonou-se também aquela necessidade quase de cosplay, de querermos fazer isto a imitar o de lá de fora, porque se estamos a imitar o de lá de fora vamo-nos transvestir e vamos vestir a roupagem até na própria língua. A coisa às vezes parecia um bocadinho artificial e deixou de haver essa necessidade. Claro que essa artificialidade às vezes também continua a existir com o português, mas acho que era mais sistemática, ou até sistémica, quando o português estava arredado da língua pop-rock.


Por falar nas letras, nos últimos anos tens escrito para os outros músicos, alguns dos quais estarão contigo no palco do Coliseu. Pergunta-cliché: quem gostarias de ver cantar versos teus? 


É pá, olha, gostava muito do Camané. Tenho muitos amigos na música que acho que vão ser recordados para sempre, mas a única pessoa que acho que vai fazer parte de um Monte Rushmore da música portuguesa para sempre, ao lado da Amália, do Marceneiro, do Variações, que existe neste momento é o Camané. E vai acontecer, tenho muita confiança que vá acontecer, até porque somos amigos e isso já se falou. Por isso, é uma coisa que eu digo não como uma aspiração louca, continua a ser um sonho por ser alguém que eu admiro muito, mas acho mesmo que vai acabar por acontecer. 


Voltando aos 2000, onde é que tu estavas no início do milénio?


No início mesmo, os meus arraiais estavam ainda assentes em Tondela, embora fosse uma altura em que eu comecei a ir muito para Lisboa, sobretudo para a zona de Queluz, e comecei a fazer música com a malta da Flor Caveira. Primeiro ligada ao punk e ao hardcore, mas logo a seguir já a uma coisa muito de singer-songwriter, folks, e voz e guitarra. Mas acho que a coisa mais determinante desses 2000 foi mesmo esse lado congregacional de músicos desalinhados que começou a nascer em torno da Flor Caveira. E comecei a passar, se calhar, mais fins de semana lá em baixo do que propriamente em Tondela. 

Tinhas alguma ligação ao Porto por essa altura?


Tinha, eu até cresci com mais ligação ao Porto do que a Lisboa. Culturalmente, o Porto sempre me pareceu uma cidade mais próxima do que Lisboa. Embora a música do Porto, em algumas coisas, até fosse mais elitista do que a música de Lisboa. Mas a cidade do Porto sempre foi uma cidade mais simpática. Quando era miúdo, todos os anos passava uma temporada com os meus pais no Porto. Então, o Porto era a minha cidade. E também musicalmente o Porto se tornou uma cidade favorita. Os GNR tiveram muita popularidade quando eu era pré-adolescente, mas eu depois descubro os GNR mais antigos, quando já era adolescente, e tornam-se uma das bandas para mim mais importantes. E o Reininho era, se calhar, o grande frontman, o rei da ironia, um dândi antes do dândi ser essa coisa foleira dos gajos que usam fatos justinhos, era o dândi de palco… E depois também porque o Porto me acolheu. Acho que antes de Lisboa, o público do Porto me acolheu. Comecei  mais vezes a ir tocar ao Porto, e depois também ao Minho, era sobretudo a Zona Norte, o Douro e o Minho. E agora também Trás-os-Montes se tem tornado um sítio muito caro para os meus concertos. Mas no início da minha carreira o Porto terá sido mesmo  a cidade mais importante.

Samuel Úria

Atuação nas Quintas de Leitura em setembro deste ano.
©João Octávio Peixoto

Lembras-te de onde foi o primeiro concerto que deste na cidade?


O primeiro concerto não tenho bem a certeza, deve ter sido uma FNAC ou coisa do género, mas eu lembro-me que o primeiro concerto que foi marcante, até porque depois se tornou um concerto regular onde já fui várias vezes, foi nas Quintas de Leitura, que é assim mesmo um fenómeno cultural especial do Porto. A primeira vez que eu fui, aquilo marcou-me, mas também parece que eu marquei de alguma forma as gentes das Quintas de Leitura, porque depois fui convidado muitas vezes. Então, a minha porta de entrada para o público portuense podem ter sido as Quintas de Leitura, sim.


Na recente cerimónia dos Globos de Ouro [em que Úria recebeu o prémio de Melhor Canção para 2000 A.D, que integra o álbum homónimo], falaste num presente “que não está fixe”, que “cheira mal”. O que é que, para ti, está a azedar o nosso tempo? 


É difícil de determinar uma só coisa, porque quando eu começo a fazer o diagnóstico, aquilo que me parece que está absurdamente mal com o presente é um cocktail muito perigoso de sentimentos antigos com tecnologias novas. Acho que as pessoas estão a ser amestradas para o seu pior com ressentimentos e medos que eu achava que já estavam sanados, ou pelo menos clarificados de uma forma mais pungente, mas pelos vistos não. E isso está a acontecer através daquilo que é a evidência maior do progresso, que é a tecnologia. Eu acho que a única coisa em que nós podemos dizer mesmo que avançámos enquanto civilização tem que ver com detalhes técnicos e tecnológicos, mas esses detalhes, essa aproximação das pessoas através da tecnologia, não está a corresponder a um progresso sociológico em termos de consciências, pelo contrário. Não é uma coisa que me surpreenda, mas por outro lado deixa-me bastante desgostoso.


E fazer canções ajuda a perfumar os dias? 


Espero que sim. Embora seja inconsciente, eu acho que uma das boas motivações para escrever canções é exorcizar aquilo que me inquieta, aquilo que me entristece. Eu nem sempre sei se isso funciona como catarse ou como panaceia para essas dores, mas, pelo menos, continua a motivar-me a essa expressão, os gritos de revolta, mais até do que aos gritos de desistência e de capitulação. 

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