PT
São novos projetos que têm pouco em comum, a não ser terem-se formado após a pandemia. Entre o indie, o hip hop, o jazz e o rock, descobrimos em que trabalhos se mete quem trabalha para nos dar música. Escolhemos quatro, mas podiam ter sido quarenta. Para ler, e logo de seguida escutar: todos estão disponíveis em streaming, embora agradeçam apoios mais físicos, habitualmente à venda nos concertos que dão pela cidade.
Nunca Mates o Mandarim
Esperei-te nas Virtudes e fiquei a ver o mar
Procurei-te nos Leões a ver navios a passar
Só na Cordoaria é que um bêbado a mijar
Me disse que talvez um dia te viesse a beijar
– in “Croché”
Dizem-se “três portuenses entre o poético e o mundano, com tempo de sobra para queimar”. O nome, devem-no a Eça de Queiroz: é uma das últimas linhas na novela O Mandarim, um conto sobre os perigos da ganância. Esse era um tema presente nas letras de João Amorim (vocalista que também dá uma perna na guitarra), com certeza, mas o fito principal deste nome era o de marcar a portugalidade. Afinal, a banda esteve para se chamar “Língua Morta”, pelo desespero que os músicos sentiam em ver tão pouca música cantada na sua língua.
Mas mais uma coincidência: como em Eça, nota-se um apego à cidade onde criam – o Porto. Além da walking tour que são as letras de “Croché”, onde se nota um carinho pela condutividade das ruas portuenses a deambulações, há uma crítica que lançam em uníssono: “Há poucos espaços a programar concertos ao vivo, muito poucos. Se não tivéssemos montado concertos em sítios em que nos autopropusemos, não tínhamos feito quase nada”, afirma Manuel Dinis (ele da guitarra e voz).
© Rui Meireles
Um dos sítios em que propuseram tocar foi na Rota do Chá, onde os entrevistámos. Além do orientalismo que parece assentar como uma luva aos Nunca Mates o Mandarim, há naqueles jardins uma indolência que convida a um indie compassado. Após a pandemia, numa ânsia de deitar cá para fora coisas cozinhadas em tempos de confinamento, propuseram-se a tocar neste local pouco habituado a receber concertos. “Tivemos que, na altura, comprar todo o material e amplificadores para poder tocar aqui”, lembra João, “mas pouco tempo depois fizemos um casamento e isso pagou-nos o investimento quase todo”.
© Ana Margarida Calheiros
Já longe dos casamentos, tiveram neste verão uma tour sólida, um pouco por todo o país. Segundo João Campello (baixo e voz), “foi ótimo, deu para descobrir sítios como Pombal de Ansiães, sítios a que nunca iria lá dar sozinho”, e também deu para “aprender como desenrascar tocar em sítios com pouco espaço, ou onde não há o equipamento exato e precisamos de resolver como tocar nessa configuração”.
Ao tocar nas festas de locais onde poucos os conheciam, foi de uma grande ajuda o trabalho feito com o EP “Nunca Mates o Mandarim Cantam os Clássicos” – covers de hinos do nacional-cançonetismo português, de Carlos Paião a Ruth Marlene, e que, segundo os próprios, é “uma coleção de arranjos indie-pop-rock que revisita a purpurina do bailarico”. Campello admite que o truque deu jeito. "Tocamos a Pó de Arroz, e todo o público que não nos conhece a sabe de cor. Já canta connosco e ganha logo uma afeição ao que nós estamos a fazer – mas também já chegaram a achar que nós éramos uma banda de tributo aos Diapasão.”
Mas não só de locais mais recônditos viveu a tour, tendo havido espaço para esgotar o Maus Hábitos, e passar pelo Musicbox, em Lisboa. A banda tocou na mais recente edição da Feira do Livro, e o primeiro álbum ainda nem saiu. Embora o Spotify automaticamente categorize edições com mais de seis faixas como álbuns, consideram que até ao momento apenas publicaram EPs. O primeiro álbum encontra-se ainda em fase de desenho, considerando a banda que o processo “vai mais ou menos a meio”. Já a identidade da banda, essa parece estar desenhada por inteiro.
Marquise
Boy do charme não digas que não é unânime esse ato
Asfixia nessa tua monogamia com os ideais
Segue lá os liberais voltaremos ao tempo dos canibais
Morgadinha, onde vais?
– in “Nave”
Lê-se na sua bio em algumas plataformas que “Marquise queria ser uma varanda no Porto, mas taparam-lhe o ar livre” e que, por isso, “munida de garganta, baquetas e palhetas, ataca ferozmente as paredes para se dar a conhecer ao mundo”. O texto, do camarada Daniel Catarino da editora Saliva Diva, é muito acarinhado pela banda, mas reconhecem-no como uma defesa criativa pós-facto: na verdade, o nome Marquise surgiu pouco antes do primeiro concerto ao vivo – afinal, teriam de ser anunciados de alguma forma. Ficou, então, a referência travessa ao local onde fazem os ensaios, na Praça do Marquês. Uma origem simples e direta que assenta bem a uma banda que parece fluir naturalmente em tudo.
Quando nos sentamos a conversar com os aliterativos Mafalda (Rodrigues, voz), Miguel (Pereira, o da guitarra), Miguel (Azevedo, o do baixo) e Matias (Ferreira, bateria), tinham acabado de regressar de tocar em Paredes de Coura, no palco que animava o centro da vila no âmbito do festival. Miguel Pereira fala de como “não estava à espera que tanta gente” os fosse ver, e de como, além da “imensa energia” que isso transmite a quem está em palco, os surpreendeu ver tanta gente a cantar com eles. “Uma coisa é cantarem connosco em concertos que damos no Porto, mas sair deste circuito e, ainda assim, ver pessoas a cantar foi uma surpresa”.
© Nuno Miguel Coelho
Esse foi, até à data, o concerto com mais público. O percurso até ali chegarem ocorre de uma forma muito orgânica, uma vez que socializam em círculos semelhantes. Os “miguéis” e o Matias já tocavam juntos, em “experiências de laboratório”, mas o momento fundador acontece na estação de Metro. Enquanto Miguel Pereira trocava de linha na Trindade, a caminho de mais um ensaio no Marquês, cruza-se com Mafalda e surge a ideia: “Cantas bem. Porque é que não cantas connosco um dia destes?” A partir daí começam o circuito semifechado de tocar em festas de associações de estudantes e em pequenos gigs organizados por amigos.
© Francisco Ferreira
E a tocar o quê? Os Marquise rejeitam géneros demasiado encerrados, dizem ter demasiadas influências para se fecharem numa etiqueta. Mas, ainda assim, é possível ver um rasgo de grunge que é harmonizado com um indie rock de ritmo puxado. Tudo isto como base atravessada pela voz melíflua de Mafalda, reconhecida por Matias como um trunfo da banda: “Tivemos a sorte de encontrar alguém que escreve bem em português, e consegue cantar bem em português.”
Assim, a escolha pela língua-mãe não foi necessariamente um debate interno aceso, foi algo que emergiu naturalmente na composição das canções. Como também acontece naturalmente a gravação do primeiro EP – após um concerto na Faculdade de Arquitetura, os técnicos de som desse evento, estando a montar os Estúdios Cedofeita, vieram propor-lhes gravar esse primeiro trabalho. Em toda esta linha de coincidências felizes, apenas um ponto cria atrito: a banda faz o seu próprio booking, e nota alguma dificuldade em encontrar salas onde atuar.
Ainda assim, o contacto que têm tido com o público tem informado o trabalho maior: prestes a lançarem o primeiro álbum, têm estado atentos ao que sentem que funciona e ao que sentem que precisa de ser aperfeiçoado. A promessa ficou registada – sairá, correndo bem, até ao final do ano.
Joana Raquel
Se estiver na bruma
E não puder olhar melhor
Procuro a fuga desse fumo
Em meu redor
– in “Tanto Ar”
Ao contrário dos restantes projetos, em apenas dois anos Joana Raquel vai já no seu segundo álbum – Queda Áscua, que se seguiu a Ninhos. O segredo está no grande motor do jazz na cidade, a Associação Porta-Jazz, que Joana já frequentava assiduamente, mas que a partir de fevereiro passou a integrar como parte da equipa. “A Porta-Jazz era algo incontornável na cidade para um músico de jazz, fazia todo o sentido eu lançar a minha música com eles”, recorda.
Joana é natural de Ançã, em Coimbra, onde o primeiro contacto com a criação de música acontece na banda filarmónica local, emprestando o seu fôlego a um oboé. O próximo passo acontece já em Coimbra, com a entrada para um curso profissional de jazz: “Acho que a minha vida é um bocado feita de acasos, porque eu não planeio muito, mas as coisas vão acontecendo. Eu não estava muito por dentro da música jazz até ir para o curso e foi lá que aprendi tudo.” Foi também o sítio onde aprendeu a separar-se do seu oboé, um instrumento que “não se inclui muito” no género.
© Rui Meireles
Começa a cantar informalmente nos projetos de estudante ao longo do curso, e continua a fazê-lo quando se muda para o Porto, para estudar na ESMAE – Escola Superior da Música e Artes do Espetáculo. O ano em que termina o curso coincide com o confinamento. “Estava, finalmente, num sítio da minha vida em que ninguém me estava a obrigar a fazer nada. De repente, não tinha nenhum prazo para cumprir, nem tinha nenhum trabalho para entregar, nem tinha nenhuma canção para aprender para um exame da escola. Isso foi muito libertador para mim.”
© Nuno Miguel Coelho
O tempo livre associou-se à liberdade de não ter de se conformar à normatividade implícita no ensino, e, como se via “a fazer uma coisa mais longe disso”, começou a “fazer o exercício” de escrever as suas próprias músicas e as suas próprias letras. No ecossistema da Porta-Jazz encontra o apoio para o primeiro disco no pianista Miguel Meirinhos: “Eu tenho muitos impulsos de iniciar coisas, mas depois tenho dificuldade em acabar, e ele tem dificuldade em começar, por isso funcionou tão bem!”
Depois deste primeiro Ninhos, com um tradicional quarteto de piano, contrabaixo, bateria e voz, Queda Áscua representa uma fuga para a liberdade ainda maior. “Aqui misturei as minhas influências: quando estava a escrever, estava a ouvir música fora do jazz, mais canções, por isso tentei fazer algo que começa com um tema, e depois parte para o improviso.”
Assume a paixão pelo lado “mais elástico, mais imprevisível da música”, mas também reconhece o receio de o fazer em palco: “Estar em palco a assumir um trabalho em nome próprio é sensível, porque é uma coisa muito pessoal, vou sempre com um bocadinho de medo. Mas a música que eu mais gosto de tocar é a minha, por isso está tudo bem.”
Black Lavender + FOQUE
The way I talk about you, you the baddest one
The way you talk about me, I’m the savage one
You always saw right through me
I just had to run
– in “Say Less”
São dois, mas contam como um só: FOQUE é um produtor natural do Porto, e Black Lavender é um cantor americano que se mudou para cá em 2022. A história deles começa com “ghosting”. FOQUE (nome de guerra de Luís Leitão) já seguia o trabalho de Black Lavender, e durante o confinamento enviava-lhe diversas mensagens com propostas de batidas para possíveis colaborações. Black Lavender, à altura confinado em Madrid, lia mas não respondia.
Na verdade, não se tratava de frieza, mas antes de uma necessidade da parte de Black Lavender em conduzir processos criativos presencialmente. A oportunidade surge com a mudança permanente de Black Lavender para o Porto – cidade onde, de resto, ele passava todas as férias há alguns anos. Aí, sim, acontece o encontro, e a primeira sessão de estúdio – o duo tornou-se inseparável até aos dias de hoje, em que estão já nos últimos estágios do álbum que têm vindo a cozinhar. Antes do Porto no pós-pandemia, os percursos de cada um pareciam perpendiculares, em caminhos que se aproximavam até ao ponto de interseção.
© Early July
Black Lavender, original dos subúrbios de Filadélfia, cresceu com os gigantes que encontrava na coleção de discos do pai, como Marvin Gaye ou Otis Redding. “Canto rap por necessidade, porque a minha voz ainda é um trabalho em curso”, confessa o cantor, acrescentando que o que conduz o seu estilo é algo como “funk com letras de hip hop”. Impelido pelas histórias que os seus vizinhos espanhóis lhe contavam da cena underground de Madrid, muda-se para a capital do país vizinho em 2012, onde passa uma década na cena das jams com a sua banda The Othahood. Após a pandemia, os elementos da banda seguem para países diferentes, e Black Lavender decide mudar-se para a cidade que já visitava todos os anos, e pela qual tinha um apreço especial.
FOQUE começa por se formar em Teatro, embora sempre tivesse cultivado atividade em projetos musicais de rock e progressivo. Após três anos a estudar Teatro no Porto, muda-se para Lisboa e decide mudar de rumo: mantendo-se na área do Teatro, ocupa-se de composição e arranjo musical para peças, mantendo em paralelo um estudo autodidata de produção musical. O nome artístico, FOQUE, surge quando decide assumir uma zona de foco no seu trabalho: é assim que assina, por exemplo, o seu álbum a solo “Ato isolado”, produção para artistas como DAMA ou Special ADZ, e composições para bandas sonoras. Mas Black Lavender antecipa problemas: “Vai ser difícil dizer o teu nome em direto, quando formos entrevistados em talk shows americanos.”
O primeiro álbum do duo está quase a sair, mas há já dois singles e uma canção "usada para testar metodologias e abrir caminho para os singles". Existe uma grande diversidade tonal entre os três: "Tri State", o tal teste pré-álbum, apoia-se em batidas quentes para um flow descontraído; já “Say Less” (em colaboração também com B Ghost, brasileiro radicado no Porto) é uma canção vibrante sobre o fim de uma relação; e o mais recente single, “Bandits”, remete para um groove típico de “filmes de blaxpoitation, um ambiente que me interessa imenso”, segundo Black Lavender. Todos eles são pistas para o álbum com data de lançamento a 4 de outubro, no Torto.
por Ricardo Alves
Partilhar
FB
X
WA
LINK