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Porto de Chegada
Iniciativas culturais lançadas por portuenses que vieram de fora
Reportagem Novembro Porto de Chegada

Novembro 2025

Há todo um circuito de espaços, plataformas e iniciativas culturais que foram fundadas na cidade por pessoas de diversas nacionalidades — e a quem a palavra “estrangeiro” já não assenta. Entre lugares de criação e de lazer, e grupos que enxertam a sua identidade em novas raízes, falámos com alguns exemplos de quem acrescenta novos timbres à pronúncia do norte.

Baque Flores do Porto

O maracatu já é por natureza um transplante cultural — originalmente criado no final do século XVII pelas populações escravas na colónia do brasil, é um cortejo ritual onde instrumentos de percussão acompanham personagens que perfazem a corte de reis e rainhas do passado, símbolos da autonomia e autoridade perdidas com a escravatura. Esta é uma manifestação musical que chama também a si as figuras religiosas sincréticas dos orixás e do candomblé.

Juliana Evangelista, natural de São Paulo, já tinha participado em grupos de maracatu, e quando se muda para o Porto em 2021, para tirar um mestrado, começa a pesquisar que grupos de maracatu existiam: “Reparei que havia em Lisboa o Baque do Tejo, mas quando cheguei cá é que tive noção que a viagem Lisboa-Porto não se faz assim com tanta facilidade”.

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Juliana Evangelista © DR

Assim, começa a procurar num grande grupo online — o grupo “Cíclicas”, de mulheres brasileiras — se mais alguém estaria interessado em fundar um grupo de maracatu no Porto. Através do grupo descobre outra cofundadora do Baque Flores do Porto, Paula Vale, que já havia participado numa oficina de maracatu com o regente do Baque do Tejo. Pouco depois, forma-se a primeira encarnação do grupo — com cerca de 10 membros, dividindo entre eles 3 instrumentos de percussão, começam a ensaiar nos jardins do Palácio de Cristal.

O nome com que se dão a conhecer, como habitual nos grupos de maracatu, toma um referente da natureza da cidade onde atuam — e escolhem como mote para o nome um símbolo portuense: a camélia. A par disso, a entidade orixá que escolhem como patrona do grupo é Oxum — a deusa das águas doces, numa referência ao rio Douro.

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O Baque Flores do Porto conta já com 60 membros, distribuídos por 5 grupos de trabalho © DR

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© DR

O grupo tem crescido a bom ritmo, contando neste momento com cerca de 60 membros ativos, e que se distribuem em cinco grupos de trabalho com funções próprias — Comunicação, Pedagógico, Produção Cultural, Recursos Humanos e Administrativo/Financeiro. Cabe, por exemplo, ao grupo de Produção Cultural a reparação de instrumentos, enquanto o Pedagógico organiza pequenas oficinas de aprendizagem. Já há algum tempo que, pela dimensão e decibéis atingidos, não conseguem ensaiar em espaço público — fazendo-o atualmente no espaço da Batucada Radical, outro coletivo de percussão brasileiro na cidade. Esta é, aliás, a maior luta do grupo: “Queremos mesmo arranjar um espaço apenas nosso, porque isso nos permitiria ter organizar as nossas próprias atividades, e para todas as idades”.

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© DR

Ao longo do seu percurso, o Baque Flores do Porto tem estado presente em momentos importantes da vida da cidade, desde as comemorações do 25 de Abril à Marcha do Orgulho. Algo que é intrínseco à natureza do maracatu, conforme sublinha Juliana: “É fundamental participarmos nestas manifestações, porque o maracatu é uma manifestação cultural de resistência, criado por pessoas excluídas e que viviam à margem da sociedade”. A este legado acrescenta-se uma camada ainda mais íntima: “Para nós isto ganha uma dimensão ainda maior por sermos imigrantes — e por querermos dar-nos a conhecer através da beleza, do que temos de bonito para mostrar da nossa cultura”.

Svet Space

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Svetlana Balabushkina © Maria Sher

A proprietária do Svet Space é Svetlana Balabushkina, mas o nome do espaço não é o seu diminutivo. “Svet”, em russo, significa “luz”. E foi uma procura de luz — ou fuga das brumas — que levou Svetlana a sair da Rússia, precisamente quando estala o conflito com a Ucrânia: “Decidi finalmente que não queria criar os meus filhos naquela Rússia”. Originalmente de São Petersburgo, diz que encontrou no Porto um espírito semelhante: “Tal como São Petersburgo, a cidade do Porto é diferente do resto do país. As pessoas são mais acolhedoras, têm uma personalidade mais marcada”.

O espaço Svet tem origem num pequeno grupo social com o mesmo nome: “Quando cheguei aqui, queria conhecer pessoas, e comecei a organizar pequenos encontros, sobretudo na comunidade russa”. O objetivo era encontrar amigos para si e para os meus filhos, mas o número de aderentes aos eventos Svet começava a precipitar a necessidade de um espaço: “Não sou artista, mas adoro estar rodeada de artistas. E comecei a procurar um espaço para poder receber oficinas e pequenos eventos”.

A busca foi rápida: Svetlana apaixonou-se logo pelo segundo local que visitou, na Praça do Exército Libertador, no coração do Carvalhido: “Antes de estar no mercado, era uma loja de têxteis um pouco enfadonha”. De uma forma muito natural, as portas abrem-se para quem quer que queira sentar-se a trabalhar com o seu computador, ou com as suas ferramentas de artesanato: “Não começámos logo a pensar que poderia ter algum foco especial em cerâmica, mas um amigo tinha um forno que não usava, e isso atraiu artistas”.

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© Sofia Hugens

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© Sofia Hugens

O forno em questão chama-se Arnold, e está devidamente identificado com diversos autocolantes do ator Arnold Schwarzenegger. Mas na mesma sala odne se encontra o forno pode ser encontrada uma pequena banca com ferramentas de montagem de vitrais, com alguns vidros coloridos espalhados. Pelas estantes das paredes vão-se encontrando peças de cerâmica, os resultados práticos de sucessivas oficinas para principiantes. As paredes em si estão habitadas por uma exposição da fotógrafa Maria Sher, íntima da casa. E pequenas plantas irrompem em diversos recantos, multiplicadas aquando de um workshop de terrarium. Esta multiplicação orgânica não deixa de despertar curiosidade em quem passa pela praça: “Costumo chamar ‘caranguejos’ a quem passa, porque como temos o nome do espaço em vinil na montra, têm que espreitar através do vidro ligeiramente agachados, e a balançar de um lado para o outro (risos)”.

A vida de bairro é algo que agrada a Svetlana — quando chegamos, estava a filmar um pequeno vídeo de Halloween para as redes sociais. À falta de um disfarce de fantasma, pediu emprestado um lençol na loja ao lado. E, quando fazem as regulares feiras de swaps (troca livre), conta-nos que “há sempre uma senhora que nos pergunta três e quatro vezes se é mesmo tudo gratuito e se se pode levar qualquer coisa. Vê-se que não é um formato habitual aqui”. Svetlana já trabalhou em marketing, já realizou documentários, e chegou a trabalhar em engenharia de satélites. Neste momento, sente-se bem com o papel de anfitriã de um espaço de luz, onde qualquer um é bem-vindo: “Mesmo que trabalhem em tecnologia, e sempre ao computador, podem fazê-lo aqui, e sentir-se rodeados de pessoas”.

Porto Arts Club

Junto ao Jardim do Passeio Alegre, numa das várias ruelas que entram pelo rendilhado residencial da Foz Velha, há um edifício que se anuncia por entre a cal e a pedra com uma fachada pintada a vermelho ocre. Foi aqui que Marc Jancou fundou o Porto Arts Club — um espaço multidisciplinar, mas com forte foco em artes visuais, fruto de uma longa obra de reabilitação do edifício que começou em 2018 e abriu ao público apenas em setembro deste ano. Trata-se de um clube para membros, mas possui dois espaços expositivos abertos ao público em geral — a mais recente exposição, com obras da japonesa Yui Yaegashi, pode ser vista até dezembro, e sucede à exposição inaugural de Mari Eastman.

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© Rui Meireles

Marc Jancou, um colecionador e negociante de arte suíço, explica-nos que o clube, que se rege pelo “desejo de viver mais poeticamente”, pretende ser um espaço em que “se desacelera, se partilha, se aprende”. “Para mim, a ideia de viver poeticamente prende-se com a estética estar presente em tudo: no que nos rodeia, na luz que usamos, na nossa proximidade aos elementos e à natureza.”

Esta relação íntima com a estética está vertida em cada centímetro do espaço — das escolhas de materiais de construção às pequenas peças de design que povoam as divisões, há uma presença de curadoria em cada gesto. Com uma alargada rede internacional cultural, Marc poderia ter escolhido diversas cidades para este projeto, mas dá-nos duas razões para a escolha ter recaído sobre o Porto: “uma das razões é pessoal; sinto-me bem no Porto, gosto da cidade. Para mim, é importante estar exposto aos elementos, e aqui, junto ao rio, temos isso. A outra razão é pragmática: o Porto é uma cidade de média escala, onde um projeto destes pode ter impacto — mas, simultaneamente, é uma cidade com uma vida cultural muito ativa que atrai artistas de todo o mundo”.

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© Rui Meireles

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© Rui Meireles

Os membros do clube têm acesso a uma série de vetores como um bar com gastronomia cuidada, apartamentos para residência, e eventos como conversas e oficinas com artistas convidados, ou showcases de arte privados. Esta atividade gravita em torno de diversos pequenos “comités” que desenvolvem atividade em torno de cinema, moda, dança ou arquitetura. Mas, além das exposições de acesso livre, a vontade de se abrirem à comunidade é uma prioridade para Marc: “queremos, já no próximo ano, lançar uma open call para artistas locais. E continuaremos a pensar em formas de nos relacionarmos com quem nos rodeia, independentemente de serem membros ou não”.

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© Rui Meireles

Bar of Soap

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© Nuno Miguel Coelho

Pedro Soares é natural de Niterói, no Brasil, onde fazia design gráfico. Sempre sentiu vontade de sair do Brasil e explorar outras paragens, mas o momento nunca pareceu certo. Até ao dia em que o universo toma essa decisão por ele: “Quando o Bolsonaro foi eleito, fiz as malas em dois meses”. A primeira paragem foi em Lisboa, onde não se sentiu inteiramente à vontade. Mas numa visita ao Porto decide de imediato que é aqui que quer viver: “Acho até que foi o Porto que me escolheu. Já passaram sete anos mas continuo a achar tudo lindíssimo. É uma cidade cheia de identidade, de charme. E acho que a maneira dos portuenses levarem a vida lembra-me do Rio de Janeiro”.

Começa logo a trabalhar no Bar of Soap, à altura detido por um casal de americanos: “Eles eram expatriados, e a clientela do bar era mais de estrangeiros a residir no Porto”. Quando surge a oportunidade de Pedro assumir a gestão, muda o conceito do espaço, tornando-o um bar declaradamente queer. “Sempre quis tornar este um espaço para todos”, conta-nos, “e agora temos muito mais portugueses a visitar-nos também, o que me faz muito feliz”.

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© Nuno Miguel Coelho

O Bar of Soap distingue-se pelas performances de drag regulares, um dos poucos espaços que o fazem no Porto. Mas Pedro não está ainda satisfeito: “Ainda não atingi completamente o que eu queria, que é tornar este um espaço cultural completo — que tenha não só performance de drag, mas também performances artísticas, e intervenções culturais”. Pedro recorda com algum gozo os espetáculos que mais gostou de receber, invariavelmente atuações drag mais arriscadas e que exploram o lado mais grotesco e menos glamoroso, com aventurismo escatológico mais apropriado para a descoberta presencial do que para a descrição textual.

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© Nuno Miguel Coelho

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© Nuno Miguel Coelho

A zona onde se insere o Bar of Soap tem as suas desvantagens — situa-se junto a uma rampa de lançamento de diversas linhas de autocarro, na Rua do Bolhão, o que não convida à construção de uma esplanada. Mas Pedro fala com um brilho nos olhos destas imediações: “O restaurante O Buraco é uma delícia. E adoro a confeitaria que temos já aqui em frente”. Mesmo sem esplanada, no interior há dois pisos para explorar, com um palco que recebe DJ sets todas as sextas, e performances de drag todos os sábados.

Zamaan

Saya Mohamed poderia ser descrita como uma farmacêutica galega, e tecnicamente não estaria errado. Mas o curso de Farmácia está há muito esquecido, e a Galiza, embora seja o seu local de nascimento, é superada pelo país que sempre esteve presente em casa, e onde nasceram os seus pais: a Palestina. Hoje, a DJ-ativista é uma residente no Porto, cidade pela qual se apaixonou já em 2015: “Na altura estava a fazer Erasmus em Faro, mas nas viagens entre Faro e Santiago de Compostela parava sempre no Porto — sentia que queria viver aqui”. Vinha frequentemente à cidade, “nem que fosse sozinha”, para ver espetáculos no Coliseu, no Passos Manuel, no Maus Hábitos.

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© Rui Meireles

Até que, em 2023, encontra o pretexto perfeito, e muda-se para o Porto para fazer um estágio na Lovers & Lollypops. Hoje, Saya é um nome caseiro na cena noturna, mas o seu percurso alarga-se para lá das pistas de dança: recentemente foi convidada por António Ónio (Fylhas do Dragão) a integrar a equipa de programadores da Associação Cultural A PiSCiNA. Embora essa fase do percurso artístico esteja ainda em construção, a linha de Saya aos comandos de uma mesa de mistura tem-se vindo a cristalizar como uma ponte: “Acho que estou num balanço de dois mundos, que é o de ser mais narrativa, mais séria, versus fazer dançar as pessoas, garantir que as pessoas se divirtam. E acho que consigo unir bem os dois mundos”.

Não muito distante deste caminho das borboletas está a plataforma que lançou este ano, a Zamaan. Esta palavra árabe significa “tempo” ou “era”. A própria ligação afetiva de Saya a esta palavra remonta à infância: “lembro-me sempre da minha mãe usar zamaan para se referir a histórias de outros tempos, de outras gerações até. Algo que está distante, mas que ainda significa algo”. Com um foco no mundo árabe, esta plataforma cultural pretende reunir pessoas “não normativas, dissidentes, e que estejam na diáspora”, e que façam uma “ressignificação das sonoridades ancestrais dos seus países de origem, uma reinvenção do passado com as ferramentas do presente”. A título de exemplo, a plataforma estreou-se já no mês passado no Porto com o act de Only Now, um produtor musical indo-californiano que “combina elementos punjabi com noise, com percussão”.

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© Rui Meireles

Saya tem família dispersa um pouco pelo mundo, mas também em Tulkarem, na Cisjordânia. Apesar de se sentir bem no Porto, e encarar esta cidade como a sua casa, confessa que “Gostava de poder visitar a minha família, e explorar com tempo a Palestina”. Algo que Saya não acredita estar mais possível de realizar com o recente acordo de cessar-fogo: “Israel é um estado terrorista, não dá para acreditar nas promessas que fazem”. Apesar de tudo, reforça que “Apesar de tudo o que se vê nos meios de comunicação, ainda é possível uma vida cultural rica. Ramallah tem uma cena underground muito forte, e um dos maiores nomes do techno, a Samaʼ Abdulhadi, veio da Palestina”.

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