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Foi há 50 anos que a censura acabou!
"Fazer teatro era um ato de resistência permanente”
Reportagem ABR: Foi há 50 anos que a censura acabou!

Foi o 25 de Abril que fez com que o país emergisse “da noite e do silêncio”, pondo fim à mais longa ditadura do século XX na Europa. Durante 48 anos, os portugueses andaram a medir (ou a pesar) cada palavra que era dita e escrita. Lápis azuis (e vermelhos), carimbos, tesouras e mesmo fogo eram utilizados pelos censores do Estado Novo para cortar a raiz ao pensamento e à criação. Dentre as formas de expressão artística e cultural, o Teatro foi uma das mais afetadas pela institucionalização da censura. A principal forma de atuação era através da censura prévia: os textos eram submetidos à Comissão de Exame e Classificação de Espetáculos, do Secretariado Nacional de Informação (SNI), para serem apreciados por censores; aqueles que não eram proibidos, eram devolvidos com uma nota sobre as páginas que deviam ser cortadas ou alteradas. Depois, havia, ainda, a censura ao espetáculo e um índex de autores proibidos.

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Peças proibidas ou mutiladas pela Censura no historial do Teatro Experimental do Porto. Cortesia de Júlio Gago.

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Júlio Gago © Rui Meireles

“Fazer teatro era um ato de resistência permanente.” Quem o diz é Júlio Gago. No Teatro, assumiu diferentes papéis. Como ator, garante, foi sempre “um canastrão”. Foi preso – não por causa de nenhum espetáculo que tenha levado a cena, embora, por isso, tivesse tido a PIDE à perna. Foi mobilizado para a guerra colonial em Angola, desertou e entrou na clandestinidade. Viveu “quase sempre a norte” com outra identidade, até que a 12 de maio de 1972 foi preso e condenado a três anos e quatro meses de prisão e a dois anos de deportação militar. Cumpriu quatro meses de prisão e depois foi para a Guiné. É o 25 de Abril que o faz regressar, e é amnistiado. Figura intimamente ligada ao Teatro Experimental do Porto (TEP), Júlio Gago recorda como era fazer teatro no tempo da ditadura, quando o medo e a repressão pairavam sobre a cabeça de artistas e criadores, que, também, com coragem e criatividade, contornavam a censura.


Júlio lembra as proibições de que foi alvo, em 1967, a encenação de Fernando Gusmão de O Tempo e a Ira (Look back in Anger), de John Osborne, já depois de o texto ter sido aprovado pelo SNI. O encenador quis utilizar dois diapositivos com as bombas atómicas em Hiroshima e em Nagasaki, que se temia que fossem censurados, mas, para surpresa de todos, foram aprovados. “Se calhar, acharam que as bombas eram cogumelos”, ri-se. A censura foi de outro tipo. O TEP teve a indicação de que estavam proibidas todas as referências a sinos, incluindo os efeitos sonoros (“porque havia uns sinos irritantes que chateavam os protagonistas”). “Tivemos uma resposta verbal: deveríamos ter pensado que a igreja inglesa era a anglicana, não era a católica apostólica.”

A censura, aliás, não incidia apenas sobre o caráter político dos textos, mas também sobre os costumes, e era exercida de forma arbitrária, ou seja, ao gosto do censor. Neste sentido, Júlio destaca mais uma proibição que o espetáculo sofreu, durante o ensaio prévio perante a comissão de censura, por atentar aos “bons costumes”. “A atriz Isabel de Castro tinha indicação que devia usar calças, mas, no final do primeiro ato, o censor não a autorizou a usar calças porque era considerada uma peça de traje masculino, que devia ser proibida a senhoras”, conta. “Arranjámos uma saia, que não tinha que ver com os figurinos previstos. Posso dizer que havia cenas em que a atriz punha uma perna em cima do sofá virada para o público e mostrava as cuecas, mas isso permitiam”, recorda o antigo diretor artístico do TEP.

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O Tempo e a Ira, de John Osborne, com encenação de Fernando Gusmão. Teatro Experimental do Porto, 1967. © Lúcio Estrela Santos

Jogar ao gato e ao rato


Quer no ensaio geral, quer na estreia dos espetáculos estavam presentes censores. “Pelo menos, quatro bilhetes ficavam obrigatoriamente reservados; não os podíamos vender, nem oferecer.” Apesar da opressão, encenadores e atores arriscavam o jogo do gato e do rato com os censores: “Em O Tempo e a Ira, fizemos a estreia com a Isabel de saia e durante mais dois ou três dias, mas depois – até porque a PIDE e os censores não apareciam todos os dias – a Isabel voltou a usar as calças”, regozija-se Gago.


Também o ator e encenador portuense Mário Moutinho recorda “truques para escapar ao lápis azul da censura” partilhados por colegas e amigos. “Havia peças que ‘escapavam’ porque os censores não percebiam o conteúdo; e depois, no ensaio feito para a censura antes da estreia, o truque era dizer o texto muito depressa, principalmente nas alturas em que poderia ser problemático.”

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Mário Moutinho, © Nuno Miguel Coelho

“Outro truque que colegas mais velhos me contaram era fazer o ensaio com o texto exatamente igual, mas com pontuação diferente, alterando o sentido da frase. Os atores diziam as mesmas palavras – porque os censores, às vezes, controlavam pelo texto que tinham na mão – mas diziam-nas de uma maneira que tornava as intenções que estariam no texto impercetíveis, e eles divertiam-se a fazer estes exercícios”, assegura Mário Moutinho.

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Cartaz do espetáculo "A Casa de Bernarda Alba" (1972). © D.R.

O caso d’A Casa de Bernarda Alba


Júlio Gago destaca a apresentação de “dois espetáculos polémicos” na história do TEP ainda durante a ditadura: “O primeiro grande escândalo foi a encenação d’A Promessa, de Bernardo Santareno, em outubro de 1957, que fez 11 apresentações”; o segundo foi A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, apresentado em 1972, com encenação de Angel Facio. “Foi altamente polémico na altura, na medida em que o Angel Facio usou vários travestis. A Bernarda Alba era o ator Júlio Cardoso, que ainda hoje está em atividade. A peça nunca foi proibida”, afirma Gago


“O que causou mais polémica foi o desenho do cartaz; um grupo de senhoras católicas extremistas andou a arrancar os cartazes da peça por toda a cidade.” Também Mário Moutinho aponta A Casa de Bernarda Alba como o espetáculo mais controverso de que tem memória no Porto. “A peça foi muito polémica porque tem uma cena de interrupção de gravidez, e era feita com as tripas e as entranhas de um carneiro, que eram levadas de um talho, e o cartaz representava uma figura feminina que tinha no sexo o Sagrado Coração de Jesus. Isto foi terrível no Porto, com missas de desagrado. A peça acabou por não ser censurada, mas os cartazes foram arrancados e houve manifestações.”


“O que andámos para aqui chegar”


Era nos ensaios da censura (ou “ensaios de apuro”), normalmente, em data próxima da estreia, que os censores avaliavam novamente a aplicação dos cortes ou a total proibição de um espetáculo. A este propósito, Júlio Gago recorda: “O TEP, em 1962, viu proibida, no ensaio de censura, Le Schmürz (Les Bâtisseurs d’Empire), de Boris Vian, com encenação do João Guedes, dois dias antes da estreia. Só 15 anos mais tarde, em 1977, já em plena democracia, é que o encenador consegue apresentar o espetáculo, que contava com a interpretação de João Paulo Costa.

“O 25 de Abril abriu todas as portas”


“Vivemos no 25 de Abril um momento único da nossa história contemporânea, e fez-se um teatro muito militante, engajado, muito político, às vezes, panfletário, e às vezes, até, artisticamente medíocre para transmitir a mensagem e o que se queria dizer, afirma Mário Moutinho, co-autor do livro “O Teatro Semiprofissional no Porto – Arte, activismo e experimentalismo nos anos 70 e 80”.


“Houve vários grupos semiprofissionais da cidade do Porto que, vivendo aquele momento, saíram dos grupos amadores mais convencionais, ou saíram de associações de produtores, de grupos de fábricas... Houve uma explosão de dezenas de grupos a fazer teatro porque era uma maneira de dizer alguma coisa sem ser a discussão política”, defende. O ator e encenador refere que o Teatro no Porto, apesar de manter “a missão social e de crítica política”, teve a preocupação de criar “produtos artísticos de outra qualidade”. Neste sentido, houve uma forte aposta na formação, com a abertura de cursos de teatro no TEP e na Seiva Trupe.


“É o que define os grupos de teatro que surgem no pós-25 de Abril na cidade do Porto”, diz, assegurando que estes grupos “foram inovadores porque trouxeram novas linguagens e novas formas de fazer teatro”. “Começaram a fazer textos coletivos, encenações coletivas, colagem de textos, teatro de rua, teatro de marionetas, teatro de luz negra, teatro multidisciplinar, misturando circo e música... Portanto, estes grupos trouxeram uma lufada de ar fresco ao teatro no Porto”, conclui.

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Peças proibidas ou mutiladas pela Censura no historial do Teatro Experimental do Porto. Cortesia de Júlio Gago.

por Gina Macedo 

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Filomena Gigante © Rui Meireles

As amigas do reviralho


Antes do 25 de Abril, Filomena Gigante era uma menina de tenra idade, espectadora de teatro graças às influências familiares. Na sua memória ficou gravada a ida com os seus pais ao Teatro Experimental do Porto (TEP), que na altura se situava na Rua do Ateneu Comercial do Porto, para ver A Estalajadeira, de Goldoni. “Fui uma privilegiada no acesso à cultura, por ser filha de ‘intelectuais’.” — O  pai era professor de Arquitetura na Faculdade de Belas Artes, o avô era crítico de teatro no jornal O Comércio do Porto e a avó, professora de piano. Mas foi o pai quem incutiu nela o gosto pelo conhecimento: "Sempre fomentou o gosto pelos livros e pelas artes. Ofereceu-me a obra de Eça de Queirós ‘O Crime do Padre Amaro’, mesmo sendo proibido, entre muitos outros.”


Embora tivesse mais acesso à cultura do que a maioria da população portuguesa, a idade não lhe permitia ter consciência da realidade, nem um pensamento político para questionar o porquê de tantas restrições. Sabia que vivia em ditadura sem saber ao certo o que a palavra queria dizer. A certeza era que o telefone de casa estava sob escuta, tinha de usar as saias abaixo do joelho, não podia usar meias de vidro, não podia usar calças de ganga e lembra-se de ir a Espanha comprar porque "aqui não havia”. E não podia usar maquilhagem: “Um dia pintei os olhos com um lápis preto e apareceu a vice-reitora que disse logo: 'A menina parece a noiva do sepulcro, vá imediatamente lavar a cara!'”

Até que no quinto ano do liceu, no Rainha Santa Isabel, fez uma “amiga revolucionária”, a Graça Castro, era um ano mais velha e “politicamente dinâmica”. As duas decidiram fazer uma peça de teatro intitulada O Homem, a Liberdade e o Carrasco. Foi a Graça quem escreveu o texto com a ajuda da Filomena, arranjaram mais duas colegas “do reviralho, como se dizia na altura”, e apresentaram à turma. Escolheram a aula de ginástica para fazer a apresentação, e a professora, que era “de esquerda”, contra o regime, quando viu a peça disse-lhes que não podiam apresentá-la “em mais lado nenhum”. "— Escondam e rasguem o texto para não terem problemas!”


Mais tarde, já no liceu António Nobre, a sua amiga revolucionária entregou-lhe panfletos contra o regime para colar nas paredes com uns autocolantes que diziam “Por um ensino ao serviço do povo”. Os cartazes defendiam que o ensino devia ser para todos independentemente da sua classe social. Mesmo antes de os poder colar na parede, Filomena perde a bolsa onde os tinha guardado. Quando vai aos perdidos e achados perguntar por ela, lembra-se, nesse instante, que podiam ter visto os panfletos e fica amedrontada. “Quem controlava os objetos perdidos era o senhor Pires, que pertencia à PIDE. — Esta bolsa é sua? — É. — Sabe o que tem dentro? — Lápis, borracha, compasso… [Tudo menos os panfletos]. — E isto? [Os ditos panfletos] — Deram-me à porta da escola. — Quem? — Isso não sei...”


No dia 25 de abril de 1974, Filomena tinha 17 anos, estava no liceu, num dia aparentemente igual aos outros. Até que ouviu através da instalação de rádio da escola um aviso do reitor Abílio da Fonseca a informar que ninguém podia sair do edifício. Gerou-se um borburinho geral e os portões estavam fechados. Filomena recorda-se de ouvir a voz do seu pai, do pai da sua amiga Graça e do reitor numa conversa turbulenta por não os deixarem levar as filhas da escola. Passadas umas horas, abriram os portões e o pai disse-lhe: “Está a haver uma revolução!”

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Encenação de Ruggero Jacobbi d'A Estalajadeira, de Goldoni. Teatro Experimental do Porto (1966). Cortesia de Júlio Gago.

O primeiro dia de maio ficou gravado na sua memória. O dia em que foi com os pais à Baixa do Porto e viu “um mar de gente, foi uma sensação indescritível de liberdade”. Isto porque antes do 25 de Abril, mais de três pessoas juntas era considerado um ajuntamento.


Após a revolução, os primeiros espetáculos de teatro que viu “eram muito acesos, as pessoas estavam sequiosas de ver teatro”. A mensagem dos espetáculos era, sobretudo, política e acerca dos direitos dos cidadãos. "O teatro era interventivo e utilizado como arma política para combater um pouco a falta de informação e o analfabetismo." No pós-revolução, o teatro teve "um papel pedagógico”, defende. 


Mais tarde, em 1978, Filomena começa a fazer teatro no Grupo da Rodaviva, com a Isabel Alves Costa, o Francisco Beija, o João Lóio, o José Topa e o Adriano Luz. Os espetáculos eram encenados pelo João Mota, professor no Conservatório. Nesta fase, surgiram muitos grupos, novos públicos e as salas estavam cheias de pessoas ávidas por descobrir os textos e as mensagens que antes não eram autorizadas.

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João Paulo Costa em cena © Eduardo Perez Sanchez

Sem lápis azul


Foi durante uma viagem de elétrico da Foz do Douro até à Praça dos Leões que João Paulo Costa se apercebeu da entrada do país numa revolução. Quando chegou ao destino deparou-se com a sua prima, “de esquerda”, que lhe disse em voz alta: “Hoje não há aulas! Está a haver uma revolução!”


João Paulo estava no primeiro ano da Faculdade de Engenharia, na altura situado no edifício da reitoria da Universidade do Porto. Quando soube da notícia, foi imediatamente para casa, juntou um grupo de amigos na sala de música, “muito excitados e curiosos” por descobrirem o que se estava a passar, e ligou a televisão. Ouvia-se o hino das Forças Armadas e uma reunião de militares que incluía o General António de Spínola, que se tornou Presidente da República , entre outros. Foi nesta reunião que declararam o “estado de sítio que suspendeu o regime constitucional vigente”.


Na altura, com apenas 19 anos, João Paulo já tinha uma certa “consciência política” para perceber o que se estava a passar. A família sempre lhe fez esse convite à reflexão, até porque um dos seus tios “esteve na célebre fuga de Peniche, era um dos sete presos políticos”, e o seu avô “foi obrigado pela PIDE a fechar um colégio do qual era diretor”. Todos estes eventos na família contribuíram para se questionar e desenvolver o seu pensamento político.


Com tantas alterações no país, durante o segundo ano da faculdade quase não havia aulas e João Paulo desinteressou-se do curso de engenharia. “Senti que estava a perder tempo”, conta. Entretanto, através do telejornal, soube que ia iniciar um curso de teatro no TEP dirigido por Roberto Merino. Depois do jantar, foi até ao café onde se costumava reunir com os seus amigos e sugeriu: “E se a malta desse lá uma saltada?” —  Foram quatro e por lá ficaram os quatro no curso de teatro. Passados três meses, João Paulo foi convidado para fazer parte da companhia (TEP).

Aquilo que distingue o Teatro antes e após o 25 de Abril é, sobretudo, a abolição da censura. “Antes da estreia de um espetáculo, havia o chamado lápis azul que riscava o que não podia ser dito”. Só em espaços mais isolados é que se conseguiam fazer espetáculos mais subversivos, isto é, ao desencontro da ideologia do regime. Esse controle terminou com a Revolução e a partir daí “os espetáculos começaram a ser muito interventivos”. As salas encheram-se de público porque “as pessoas queriam saber mais sobre o que se estava a passar no país”. Após a revolução, “surgiram novos públicos”.


Foi, aliás, a partir do 25 de Abril que se deu uma explosão de repertório; além dos clássicos, como Molière, Shakespeare, Sófocles, surgiu um grande interesse por autores como Gil Vicente e António José da Silva, enquanto se faziam outro tipo de espetáculos, como A menina Júlia, de August Strindberg. Assim como a encenação de peças de Bertolt Brecht, autor até então censurado.

Reportagem ABR: Foi há 50 anos que a censura acabou!

© Rui Meireles

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© Rui Meireles

Foi, também, com o 25 de Abril que surgiram as primeiras escolas de teatro que permitiram a profissionalização de atores. Entre outras, surgiu a Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE), da qual João Paulo Costa é fundador em conjunto com outros atores, como o António Capelo. Deu aulas de interpretação durante muitos anos na ACE e, atualmente, continua a fazer espetáculos no Teatro do Bolhão.


Neste momento, existem públicos mais ou menos estabelecidos no Porto? João Paulo acredita que “já houve mais interesse pelo Teatro”. Talvez as redes sociais tenham levado as pessoas a uma espécie de “isolamento acompanhado, que destruiu um pouco o sentido comunitário de viver uma experiência artística”.


Sem perder de vista a função de entreter, o ator refere que o Teatro "volta a colocar em agenda as temáticas mais ou menos políticas: a guerra, os direitos das mulheres, a crise ambiental”. No fundo, “o Teatro continua a ter este papel educativo que ajuda a sociedade a pensar”.

por Maria Bastos

A importância do teatro para contar a história do país

“As pessoas que estavam a fazer a luta armada contra a ditadura fascista acreditavam que eram capazes de abalar o regime. A capacidade de mostrar que é possível deitar abaixo uma ditadura que durou 48 anos, tão opressiva, com uma polícia política, é uma mensagem muito importante.”

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André Amálio num ensaio de "Luta Armada"  © Filipe Ferreira 

O ator e encenador André Amálio nasceu depois do 25 de Abril, mas conhece bem a história de Portugal no período anterior à Revolução dos Cravos. Na companhia Hotel Europa, da qual é fundador, juntamente com Tereza Havlíčková, tem-se debruçado sobre temáticas como identidade cultural e o passado recente do nosso país que servem de matéria para diversas criações de teatro documental.


A primeira criação de teatro documental em que aborda temas como o fascismo e o colonialismo portugueses foi Portugal Não É um País Pequeno (2015), cujo título é emprestado a um cartaz do Estado Novo. Quase dez anos depois, a investigação sobre a história recente do país continua com Luta Armada. O espetáculo estreia, este mês, no TNDM II, em Lisboa, integrado nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, e em maio viaja até ao Porto para ser apresentado, nos dias 15 e 16, no Teatro Campo Alegre, no âmbito do FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica).

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Cartaz de "Luta Armada" © Design de António Gomes 

Nós partimos para estes projetos porque queremos conhecer, queremos saber mais. O período revolucionário é mais um período que continua envolto em muito mistério”, afirma André AmálioLuta Armada incide sobre as ações de "grupos que viam na luta armada a única forma de acabar com o fascismo e o colonialismo português, como a LUAR, as Brigadas Revolucionárias e ARA”; as ações de grupos de extrema-direita que atuaram no período do PREC, entre 1974 e 1975, como a organização terrorista MDLP; e ainda a atividade das Forças Populares 25 de Abril (FP-25), a partir de 1980.


Esta criação parte de um trabalho de pesquisa, mas também de “uma extensa recolha de testemunhos de pessoas que militavam nestas organizações”, tarefa nem sempre fácil. “Nós tivemos muita dificuldade em falar com pessoas que pertenceram à rede bombista ou aos grupos de extrema-direita, como, também, temos tido muita dificuldade em encontrar alguém das FP25 que queira falar sobre essa experiência”, revela.


A vontade de trabalhar estas temáticas, conta, “nasceu precisamente do período que estamos a viver agora”. “Estamos a voltar a um período de extremos, de polarização na política, que nos levou a querer olhar para diferentes momentos da nossa história em que vários grupos chegaram a um ponto tal de extremismo que quiseram partir para ações armadas." Neste espetáculo, são retratados diferentes períodos: “o período em que está quase a acontecer a queda do fascismo em Portugal, o período revolucionário, e depois o enorme período em que a democracia se cimenta.”

O teatro documental e o confronto com a nossa história coletiva


A Portugal Não É um País Pequeno seguiram-se Passa-Porte, Libertação, Amores Pós-Coloniais ou Os Filhos do Colonialismo. Todos eles procuram debater estes temas da história recente de Portugal. “Achamos que há muita coisa que podemos aprender com o passado, que há muita transmissão de memória que não foi feita, há muitos assuntos que — por serem problemáticos — não foram discutidos na nossa sociedade”, afirma Amálio. O teatro pode, pois, ser um espaço de discussão e análise destes temas. “Fazemos um teatro político que tenta agir e que tenta olhar para problemas que existem na sociedade, e que tenta fazer essa ponte entre o passado e o presente”, sustenta.


Talvez porque a realidade ultrapassa a ficção, Amálio prefere ir à procura de histórias reais e dos seus protagonistas para fazer teatro. Nos espetáculos de Hotel Europa, as pessoas interessam mais do que as personagens. “Cada espetáculo é um objeto diferente; nós desenvolvemos as nossas criações a partir das pessoas que estão naquele momento a trabalhar connosco. O trabalho de investigação e de recolha de informação pode ser feito com os intérpretes — quando são intérpretes profissionais —, mas também com as pessoas de uma comunidade — que não são profissionais — que são desafiadas a entrar no projeto e a pensar o passado coletivo ou individual, a sua própria história pessoal e familiar”, conta.

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"Os Filhos do Colonialismo", Hotel Europa © Vera Marmelo

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"Libertação", Hotel Europa © Bruno Simão

O teatro e a censura antes do 25 de Abril


Para André Amálio, a palavra “é uma coisa poderosíssima”. E o teatro, por recorrer à palavra, facilmente se torna alvo de censura: “Enquanto outras artes, como a dança, poderão ir para um caminho da abstração, o teatro pode comunicar de uma forma muito direta, e isso tem assustado muito ao longo de muitos anos”, sustenta.


“Os artistas são estas pessoas perigosíssimas", ironiza. "Talvez, por serem mais livres, por poderem ser mais livres para poderem criar, metem medo. A liberdade mete medo. A liberdade, a ousadia, a não conformidade sempre meteram muito medo a ideologias conservadoras. O teatro e a arte em geral são transgressores”, conclui. 

“O teatro não transforma, quem transforma são as pessoas”


Sara Barros Leitão nasceu quase duas décadas depois do 25 de Abril. Atriz, encenadora e criadora, fundou, em 2020, a estrutura artística Cassandra, onde desenvolve os seus projetos, e que desde outubro do ano passado tem casa no Bonfim. Neste momento, no âmbito dos 50 anos do 25 de Abril, anda em digressão por várias cidades com o espetáculo Guião para um País Possível, que resultou de um mergulho nos registos oficiais dos discursos na Assembleia da República feitos no período democrático.


“Comecei a apaixonar-me, mais uma vez, por arquivos e por papéis, neste caso pelos Diários da Assembleia da República, que são transcrições fiéis e completas de tudo o que lá acontece, incluindo os apartes, as didascálias e as indicações”, conta-nos, assegurando que estes registos se parecem, de facto, com um guião de teatro. “Têm personagens, conflito, apartes, didascálias, conteúdo, discussão, têm tudo o que um guião tem.”

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Sara Barros Leitão no Espaço Cassandra © Nuno Miguel Coelho

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"Guião para um País  Possível" © Teresa Pacheco Miranda  

Tendo como ponto de partida estas transcrições, Sara imaginou um espetáculo para “fazer uma viagem pelos últimos 50 anos da Democracia” e contar uma história “a partir de um ângulo que é também ele uma conquista da democracia — uma Assembleia livre, plural, com muitos partidos representados, que não acontecia antes do 25 de Abril”.


“Tem sido um percurso muito interessante descobrir que país foi este nos últimos 50 anos; perceber o que andámos para aqui chegar, os avanços e os recuos, o que foi mesmo difícil, o que foi mesmo insólito, e perceber o momento em que nós estamos hoje”, sustenta. Quando decidiu fazer este espetáculo, “não imaginava estarmos a passar por uma fase como esta”. Desde que Guião para um País Possível estreou, “o Governo caiu, houve eleições, reconverteu-se completamente a Assembleia da República, agora com 50 deputados de extrema-direita”.

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Espaço Cassandra © Nuno Miguel Coelho

Para Sara, não há arquivos mortos


Sara é fascinada por arquivos e, por isso, gosta de partir de documentos e de histórias reais para “reescrevê-las e recontá-las” nas suas criações artísticas. Foi o que fez, em 2018, com o Arquivo do TEP para o espetáculo A Teoria das Três Idades. “Quando conheço um arquivo que ainda não foi explorado dá-me vontade de mergulhar nele”, conta. E este mergulho, admite, “foi determinante” na sua vida. Foi o primeiro espetáculo em que se assumiu como criadora e em que sentiu “esse ímpeto para criar”.


Do Arquivo do TEP, destaca uma “história muito bonita” sobre “a explosão” do 25 de Abril: “Vêem-se nos arquivos discursos de atores, que os devem ter dito em público durante o 25 de Abril, e depois no dia seguinte à revolução não houve espetáculo porque um dos atores não tem voz. Essa tabela que conta que o ator ficou sem voz retrata muito bem o que terá sido essa explosão de felicidade.”


Nos seus espetáculos, interessa-se por abordar temas da “nossa memória coletiva, às vezes mais esquecida” e admite ter “um fascínio muito grande” pelas questões do trabalho, “pelos trabalhos invisíveis e pelas histórias também mais invisíveis”. Prova disso é o espetáculo Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa, criado em 2022 e que continua a ser apresentado, tendo partido do estudo dos arquivos do primeiro Sindicato do Serviço Doméstico em Portugal.

“Aquilo que me interessa, mais do que contar a história como ela foi, é conseguir fazer um bom espetáculo. Acho que essa é a minha motivação.”

Para a atriz e encenadora, “um teatro atento é um teatro em diálogo com o mundo e com as transformações” que acontecem, apontando, como exemplo, o teatro que surgiu no pós-25 de Abril, com o PREC. “Fez-se um teatro muito reivindicativo, mas o país era assim, já não havia lugar para o teatro burguês. Contava-se as histórias dos operários, das pessoas que estavam a ocupar as terras, da reforma agrária, era isso que estava a acontecer”, refere.


Neste sentido, afirma que o teatro que se fez durante este período em Portugal foi “muito forte" porque "acontecia em todo o lado, e fora do teatro”, defendendo, ainda, que o teatro é político não apenas no seu conteúdo; “tem de ser na sua forma e na forma como chega” ao público.


No entanto, a criadora artística sustenta que o teatro não é, por si, um agente de mudança. E recorda, a propósito, a sua experiência no elenco do espetáculo Catarina e a Beleza de Matar Fascistas. “Pude experienciar o magnetismo que esse espetáculo provoca no público, e o quão o público acha que sai transformado do espetáculo, mas quem vai ver são as pessoas que já querem ouvir falar do tema. Tivemos agora umas eleições que mostram isso mesmo; raramente conseguimos chegar a um público que pensa diferente. Por isso, o teatro não transforma, quem transforma são as pessoas”, remata. 

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Sara Barros Leitão © Nuno Miguel Coelho

por Gina Macedo

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