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“Um país empobrece quando discrimina uma parte de si próprio”
Entrevistas
Conversámos com a atriz e encenadora portuguesa Maria Gil, ativista pelos direitos das pessoas ciganas, sobre o seu percurso artístico, a relação com o Porto e o combate ao racismo.
Quem conta o Porto Maria Gil

Novembro 2025

Apesar de ter nascido “quase por acaso” na Maternidade de Júlio Dinis, há 53 anos, Maria Gil foi registada em Gaia, onde residia a família. Ainda assim não tem dúvidas: sempre sentiu “ser do Porto”. Pais e tios tinham bancas no antigo mercado da Praça de Lisboa e, na juventude, também ela vendeu em feiras. Limpou escadarias, trabalhou numa padaria de um hipermercado, passou por lojas de roupa e até desenhou móveis numa loja em Castelo Branco. Ao mundo da interpretação chegou já depois dos trinta, mãe de quatro filhos. 

Começou no teatro comunitário e no teatro do oprimido, sobretudo nas associações portuenses PELE e MEXE, uma experiência de “transição” que lhe permitiu “perceber o seu lugar na cidade” e os “diferentes patamares de consideração da arte”, como revela agora à Agenda Porto. Descobriu depois que “o cinema era o que gostaria de fazer toda uma vida” e diz até, entre risos, ser “amuleto de sorte para os cineastas”, pois várias das curtas-metragens em que entrou arrecadaram prémios. Foi o caso de Cães que ladram aos pássaros (2019), de Leonor Teles, selecionada em mais de 50 festivais internacionais.  


No filme, feito a partir de um convite do programa municipal Cultura em Expansão à realizadora, Maria contracena com três dos seus filhos – Vicente, Salvador e Mariana. Hoje recorda como vê-los na projecção de estreia, em Veneza, a fez perceber que, apesar das dificuldades da vida (“não só financeiras”), tinha o seu “lugar e o potencial para acolher e partilhar”. Foi com “orgulho imenso” que viu a família associada a Leonor Teles, “uma das grandes cineastas que temos em Portugal”, diz, que a apaixonou desde o primeiro filme (Balada de um Batráquio, Urso de Ouro em Berlim, que aborda a tradição de colocar sapos de loiça em lojas ou casas para afastar ciganos).  

Quem conta o Porto Maria Gil

Projeção de Cães que ladram aos pássaros, no Teatro Municipal do Porto — © Pedro Sardinha 

Cães que ladram aos pássaros acompanha o verão de Vicente e sua família, obrigados a deixar a casa no centro do Porto devido à especulação imobiliária. Gil colaborou no guião desta ficção que “tem muita verdade”, inspirada também em episódios que ela viveu “como mulher e cigana” na procura de habitação. Como quando lhe perguntaram onde estava o marido ou quando duvidaram da sua nacionalidade: “‘mas é mesmo portuguesa? Tem aí um sotaquezinho’”. A atriz acha que o filme “mostra como amamos a cidade e a rejeitamos”, “ou ela a nós”. E aprofunda a ideia: “pensar em sair para os arredores do Porto seria retirar os meus filhos de um espaço-escola com uma diversidade de conhecimento e de acontecimentos de que poderiam usufruir enquanto crianças”. Recorda, por exemplo, que quando viviam perto do Palácio de Cristal, os filhos chamavam aos jardins o seu “quintal", e lembra o quanto leram e brincaram na Biblioteca Municipal Almeida Garrett.  

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Maria Gil com os filhos, em Cães que ladram aos pássaros, de Leonor Teles — ©Uma Pedra no Sapato

Maria defende que “as pessoas ciganas foram as primeiras a sofrer a gentrificação”, já que “muitas foram levadas do Centro Histórico para os bairros sociais”. “Por terem limitações económicas, talvez tenham sido as primeiras contempladas” com uma casa, diz, defendendo que “o Porto se envergonha muito da sua pobreza”. Décadas depois, um quarto dos membros deste grupo étnico está dentro da franja dos 20 por cento mais pobres do país, segundo o INE. E quem nasce cigano têm menos 10 anos de esperança de vida do que a média nacional.  


Para a artista, “as várias camadas de pobreza que afetam a comunidade resultam de 500 anos de perseguições”. Pois apesar de os historiadores situarem a entrada dos ciganos em Portugal no século XV, após uma longa travessia desde a Índia, são hoje ainda “vistos como alguém que vêm de outro lugar”, argumenta Gil. Mesmo que, de acordo com dados públicos, cerca de 90 por cento dos ciganos lusos sejam netos de pessoas que já nasceram no país, valor bem superior ao da população total. “Nós não estamos aqui, nós somos de aqui”, afirma veementemente. Acredita que o preconceito coletivo é criado a partir da “invisibilidade” e insiste: “posso correr todos os lados do mundo, mas eu sou mesmo de aqui”. Assume até “estar cheia de tiques urbanos” e, de novo entre gargalhadas, revela não entender “muito bem como as coisas funcionam fora do Porto”. 

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Entrevista a Maria Gil — ©Guilherme Costa Oliveira

“Que giro, nem pareces cigana” 


Diferentes vozes do activismo cigano falam na “clandestinidade étnica” que muitas pessoas têm de assumir no quotidiano, seja para conseguir uma casa, um emprego ou noutras situações em que sentem diferenças de tratamento. Por exemplo, em projetos artísticos que codirigiu com alguém não-cigano, Maria conta como era frequente gente da equipa ou externa dirigir-se apenas à outra pessoa e não a ela. Ou como a tratavam com paternalismo quando dava uma opinião “depois de muito calar”. “O problema é que quem trabalha connosco também deixa que isso aconteça”, lamenta.  


Em 2023 interpretou uma personagem “cheia de estereótipos” na série policial Braga, da RTP, cuja premissa é a morte de uma criança cigana. Argumenta que o fez “para que as mulheres ciganas se sentassem no sofá e vissem efetivamente uma mulher cigana no papel e não uma branca mascarada”. Gostou “muito de trabalhar com Pedro Ribeiro”, o realizador, mas brinca que na história todos “foram salvos pelo padre de olhos verdes, claro”.  


Noutro momento na RTP, num episódio sobre racismo do Prós & Contras, estava na plateia e foi assim apresentada antes de intervir: “Maria Gil, que, com o seu cabelo ruivo, quem diria que é cigana?!”. Ouvir frases semelhantes, como “ah, que giro, nem pareces cigana”, é recorrente. Num casting, viu até rejeitarem os filhos porque queriam “ciganos a sério”, ou seja, morenos e de cabelo preto. 

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O racismo, a discriminação e a invisibilidade a que estão sujeitos os portugueses ciganos são “muito específicos e transversais”, defende, vão “da direita à esquerda”. Maria retratou-o na peça Homo Sacer, em 2024, codirigida com Teresa V. Vaz a convite do coletivo Bestiário para o Teatro Nacional D. Maria II. É “um espectáculo sobre anticiganismo, não sobre ciganinhos a fazer de ciganinhos”, mesmo que tenha “um lado de humanização dos corpos ciganos”.  


“Cresci com o ideal de que ser branco é ser melhor, que nós é que estamos errados por sermos ciganos”, conta a ativista. E ainda que ache que o pensamento ainda prospera, considera também que nos últimos quinze anos tem havido “uma releitura, um resgate da auto-estima das crianças ciganas”. Algo que espera que “se intensifique com a introdução da história cigana nos manuais escolares [recentemente aprovada], ainda que escrita por não ciganos”, diz sorrindo.  

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“Somos um país que quando acabou com as colónias territoriais continuou a colonizar narrativas”. Explica que a União Europeia tem incentivado esta recolha histórica, o que a somar à Internet e às transformações globais têm contribuído para uma maior autoconsciência de alguns jovens. “Só a nossa existência, e o facto de gerarmos jovens portugueses ciganos, que mantêm a sua identidade e a consciência da sua identidade, é sempre um acto de resistência”. 


Mesmo no ativismo, Maria diz deparar-se frequentemente com estruturas “organizadas a partir da branquitude”. “Quando chegam a nós vêm sempre com um espaço de mediação”, o que acaba por fazer “uma tradução” de conceitos como “a resistência, o feminismo cigano e até sobre o que é uma pessoa cigana”. “Toda a gente tem opinião sobre nós”, diz, assumindo que a mudança se faz “a passos lentos, tendo em conta as velocidades que socialmente vamos encontrando”. 

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Homo Sacer, em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em 2024 — ©Filipe Ferreira 

“A minha luta é colocar os nossos corpos nos lugares a que temos direitos”, garante a atriz, consciente de que tem uma imagem que nem sempre corresponde aos estereótipos. “O grande processo de desumanização das pessoas ciganas é verem-nos sempre de uma única perspetiva generalizada”. Algo que para Gil se tem intensificado desde 2019, com o surgimento de “um racista com mais à-vontade para o ser”, o que apesar de tudo também levou “à criação de um novo espaço de consciência para muitos ciganos”. Ela própria tem “feito muita revisitação de acontecimentos” nos últimos anos, por exemplo da infância (“ah, era por isso que não me chamavam…”). Mas alerta que, apesar dessa maior consciência, "não há ainda a organização suficiente para ações coletivas”, e que os ciganos não ocupam posições de liderança nos movimentos e associações anti-racistas. 


Na política institucional há também sinais contrários. Em 2022, nas comemorações da Restauração da Independência, Marcelo Rebelo de Sousa evocou “os portugueses de etnia cigana que deram a vida pela nossa independência nacional” em 1640, destacando um cavaleiro-fidalgo chamado Jerónimo da Costa. “Foi importante”, admite Maria, salientando que muitos outros nomes foram apagados ao longo dos séculos. Destaca, por exemplo, o papel ativo da família Maia na Implantação da República no Porto, que não consta nos registos, em particular o de João Maia, seu trisavô. Para que não lhe passe o mesmo, ela pretende agora imortalizar num livro o relato de um momento de 2024: “consegui juntar um grupo de mulheres ciganas para participar no desfile do 25 de Abril em Lisboa”. “Se apagas vidas ciganas das narrativas, apagas a história de Portugal”, defende. E é por isso que não gosta de se descrever como a “primeira cigana” a fazer algo, para não contribuir para o apagamento de todas as que o fizeram antes ou paralelamente”.  


Do Estado, a artista espera “um compromisso de reparação histórica e de reparação das assimetrias sociais criadas pelas discriminações seculares”, no fundo, “uma reparação a todo o país”. “O tão questionado RSI foi a medida mais inteligente que eu vi em termos de reparação social” (“não só para ciganos!”, sublinha), conta-nos, por exigir às famílias beneficiadas escolarizar as suas crianças. “Apesar de ter muitas fragilidades”, por seguir uma lógica de “punição”, para Gil o RSI “trouxe a escolaridade a lugares onde era desvalorizada” e conseguiu “um grande decréscimo do analfabetismo nas comunidades ciganas”. Salienta também a importância das bolsas de estudo Roma Educa, pois diz que leva os jovens a pensar “eu posso ser quem sou – cigano – e continuar a estudar”.  


Embora tenha sido retirada da escola numa idade precoce, Maria valoriza muito a educação formal. Acha até “que as licenciaturas deveriam passar para o plano obrigatório”, reivindicando mais facilidades de “acesso ao ensino superior”, sobretudo para jovens que “não tem uma retaguarda e um exemplo que lhes diga que vale a pena continuar a estudar”. 

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O Som que Viaja, atividade do Cultura em Expansão, 2025  — ©Sérgio Monteiro

“O nosso território é o Porto” 


Daniela Torres é uma moradora do Bairro de Aldoar, cigana e estudante de Relações Internacionais. Maria descreve-a com “um tesouro” e recorda-lhe uma frase: “ela diz ‘quando entrei para a universidade, entrou comigo a minha avó e a minha mãe’”. Daniela tornou-se o fio que une as atividades multidisciplinares que compõem o IRM_A, projeto artístico-social criado por Maria Gil, junto às “companheirissimas” Marta Leitão e Inês Barbosa, e selecionado para a programação de 2025 do Cultura em Expansão. A jovem, designada aqui como “narradora para as memórias do futuro”, relata todo o processo de trabalho que o projeto tem desenvolvido no bairro portuense. 


Ao chegarem a Aldoar para implementar o IRM_A, Gil diz que foram “muito bem acolhidas pela Associação de Moradores”, mas que encontraram “um território aparentemente inóspito”, com “espaços que poderiam gerar interações e criação artística e cultural, mas que estão fechados ao abandono”. Um bairro que exclui inclusive gente que lá vive. Conta que as “pessoas estão cansadas de iniciativas que aparecem, dão a mijadinha e vão-se embora”, por isso estavam relutantes em participar em mais um. Especialmente as mulheres, principal público-alvo do projeto, “que normalmente têm uma grande carga de trabalho”.   


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Ainda por cima, o local onde trabalhariam seria a sede da Associação de Moradores, que habitualmente presta também um serviço assistencialista. “Percebi que as pessoas se sentiam constrangidas ao entrar num espaço que tem obviamente uma ligação com a sua fragilidade e também que muitas mulheres não se sentiam confortáveis”. Sentiu também que ali, no interior, pouca gente no bairro ia “dar pela sua presença”, pelo que resolveram fazer tudo ao ar livre. E, quando durante as atividades, viram “montes de tapetes a serem sacudidos” ou “muitas cortinas a abrir-se”, alegraram-se: “elas estão a ver-nos”. Ao mesmo tempo, davam visibilidade à carência de mobiliário urbano no bairro onde se possa “fazer uma construção emocional e social a partir dos espaços de convívio”. 


Um conjunto de artistas, “maioritariamente ciganos e maioritariamente mulheres”, como a bailarina Kali Musa, o cantor Diego el Gavi ou a escritora Regina Guimarães, foram convidados para dirigir oficinas de diferentes ramos, através da quais se fez uma revisitação da história cigana envolvida com o lugar. “O projeto tornou-se muito emocional”, revela a criadora, que pretendia “humanizar as pessoas ciganas nos seus territórios”, diz: “e o nosso território é o Porto”. Como objeto final do IRM_A, será apresentado às 18h30 de 21 de dezembro, no Teatro do Bolhão, um documentário realizado por Salvador Gil, um dos filhos de Maria, que compila o trabalho dos últimos meses.  

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O Som que Viaja, atividade do Cultura em Expansão, 2025  — ©Sérgio Monteiro

“Há pessoas de outros lugares do país que querem que eu vá reproduzir este projeto”, confidencia a autora, que pensa “redimensioná-lo para que possa ser realizado noutros contextos e lugares”. Cansada de ver iniciativas de pessoas ciganas que não deixem sucessão, espera que, no final, alguém do bairro possa fazer uma nova candidatura, quem sabe se Daniela Torres. 

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