PT

EN
Quem conta o Porto acrescenta um ponto
João Gesta e a poesia como liturgia do quotidiano
Entrevistas
Quem conta o Porto João Gesta

Diz-se defensor da liberdade livre, citando o poeta francês Rimbaud. Liberdade que encontramos na forma como programa os espetáculos das Quintas de Leitura, ciclo poético prestes a celebrar 25 anos. É o coordenador de programação da Feira do Livro do Porto. Acredita na Revolução. Todos os dias, religiosamente, antes de se deitar, lê poesia.  

Nasceu em Matosinhos, em 1953. Com sete anos, veio viver para o Porto porque o seu pai, que trabalhava nos CTT, pediu transferência para a cidade vizinha. A sua primeira morada na Invicta foi na Rua do Cerco do Porto, onde viviam “pessoas da pequena e média burguesia”. Ao fundo, ficava o Bairro do Cerco do Porto. “Os meus grandes companheiros e até a minha primeira namorada eram de lá. Os melhores períodos da minha vida enquanto criança, as experiências na catequese, foram todas passadas com amigos daquela zona”, conta. 


Estudou no Liceu Alexandre Herculano, que, nas suas palavras, “era maravilhoso”. Dentre os colegas, aquele que mais se distinguia, recorda, era o Rui Reininho, mais novo do que ele dois anos. “Era um homem lindíssimo e tinha já o charme que tem hoje”. Como Gesta não era “muito bom aluno”, os pais, “para o chatearem”, colocaram-no no Colégio João de Deus, dirigido por padres. Não gostou. Recorda a entrada, em 1972, para a Faculdade de Economia do Porto — onde conheceu figuras que “o marcaram profundamente”, como Miguel Cadilhe, Daniel Bessa e Fernando Teixeira dos Santos — como “um período profundamente revolucionário”, altura em que iniciou a sua militância política. 

Foram as injustiças e as assimetrias sociais com que se deparou desde a infância que o levaram a querer estudar Economia. “Tinha amigos que iam para a escola descalços e a única refeição do dia que faziam era o pãozinho quente com leite que davam lá, e eu pretendia perceber como era possível um desequilíbrio desses num país europeu.” Mas, diz, era “profundamente naive” e rapidamente se fartou da faculdade, porque “o que se aprendia não era a desmontagem disso”. Largou a faculdade e, por volta dos 22 anos, agarrou “um trabalho duríssimo” no Porto de Leixões, onde era medidor oficial de madeiras que vinham das colónias portuguesas. Foi na área do comércio de madeiras que trabalhou durante mais de duas décadas. “Fui aprendendo, e era bom no que fazia; na fase final dessa minha carreira na fileira florestal, acabei por ter as minhas empresas, mas depois, fartei-me.” Em 2001, ano da Porto Capital Europeia da Cultura, lança as “Quintas de Leitura”, estruturadas em torno da obra de um poeta, e depois, a partir de 2002, continua estas sessões já como programador do Teatro Campo Alegre.  

O seu interesse pela poesia começa, ainda, nos anos 80. Foi “fortemente influenciado pelas noites gloriosas” das Segundas de Poesia, no Pinguim, criadas por Joaquim Castro Caldas, que “era um homem muito à frente do seu tempo”. Recorda-se, ainda antes, de ir com Germana Tânger e com os seus pais ver recitais “em que as pessoas diziam poesia extraordinariamente bem, com rigor, mas achava uma seca”. E, por isso, assegura que, “ainda com os seus 18 ou 19 anos, já pensava em como dar uma dimensão engraçada e também muito mais profunda” aos recitais. 

Quem conta o Porto João Gesta

João Gesta © Ana Caldeira

Quem conta o Porto João Gesta

Quintas de Leitura © João Octávio Peixoto / TMP

O fenómeno das Quintas de Leitura: a dessacralização da poesia

Com sessões mensais a esgotarem mal os bilhetes são postos à venda, as Quintas de Leitura são um fenómeno de popularidade invulgar: a cada mês, 400 pessoas pagam para ir a espetáculos onde se ouve e vê poesia. O evento começou no Cine-estúdio, com 80 lugares, passou para uma sala com 140 e o grande salto aconteceu a partir de 2009.


“É um público bastante fidelizado e, ao contrário do que se possa pensar, é relativamente conservador, mas no pós-pandemia o público alterou, tornou-se mais jovem.” Resultado, também, da modalidade da venda online dos bilhetes. Mas não tem dúvidas de que “o momento que marca os novos públicos é a pandemia”. Hoje. há famílias inteiras nas sessões. “Vemos as três gerações, avós, pais e netos.”

Quem conta o Porto João Gesta

Quintas de Leitura © João Octávio Peixoto / TMP

“Dessacralizar a poesia” e fazê-la chegar a todo o lado é o grande objetivo deste ciclo poético. “Os poetas não são santos. A poesia tem de ser misturada, tem de cruzar outros terrenos, outras disciplinas.” Gesta é, pois, apologista da transdisciplinaridade, do cruzamento de várias formas de expressão artística para acrescentar alguma coisa ao poema. 

 

“Lembro-me de uma conversa que tive com uma coreógrafa a quem dei um poema do Herberto Helder sobre a Mãe; ela leu-o e disse que era ‘violentíssimo’. ‘O que me apetecia era atirar-me para o chão e partir-me toda.’ Eu perguntei se ela queria o desafio de interpretá-lo, e ela [apresentou], no Campo Alegre, uma coisa maravilhosa, visceral, poética e violenta, à volta da figura da mãe.” — Estava descoberto o caminho. Se já havia o cruzamento da poesia com a música, Gesta considerava que faltava o cruzamento com a dança e a performance e não só. “Até hoje, com a ajuda da Julieta Guimarães, da Erva Daninha, temos feito imensos cruzamentos com o novo circo, e depois coisas completamente loucas.”  


Nestes espetáculos, em que a palavra é matéria incendiária, Gesta gosta também de deixar espaço para o absurdo e a surpresa. A propósito, recorda a vez em que o radialista Fernando Alvim participou nas Quintas de Leitura e queria entrar em palco “de uma maneira diferente, desconcertante”. “Eu pensei, pensei e disse que achava engraçado ele chegar ao palco numa ambulância; abriam-se os portões lá de fora, e depois duas maqueiras traziam-no, mas não o tratavam bem; tratavam-no mal e despejavam-no da maca. Ele gostou muito da ideia e assim foi.” O programador evoca, ainda, algumas sessões fora de portas, como a que aconteceu, em 2018, no Pérola Negra, antigo bar de striptease, agora club dancing, e que contou com a participação de uma stripper. “Os poemas eram um bocadinho mais assanhados e tudo aquilo foi um bocadinho mais assanhado, mas as pessoas adoraram”, ri-se.  

Novas vozes da poesia e da música portuguesas  


Gesta gosta de descobrir “novos talentos” da poesia que depois divulga às quintas: “um grande nome que muito em breve vai rebentar é Francisca Bartilotti”, afiança, apontando, ainda, Francisca Camelo, Filipa Leal, Cláudia R. Sampaio, Raquel Nobre Guerra e Maria Lis como autoras que merecem ser lidas. “Na poesia portuguesa, neste momento, e generalizando, a voz feminina é muitíssimo mais forte do que a voz masculina.” 

O programador recorda, ainda, a presença de Adília Lopes numa das primeiras sessões das Quintas de Leitura, em 2002, quando ainda quase ninguém a lia. Diz que para a convencer a participar contou com a ajuda de Valter Hugo Mãe, que a publicava na Quasi Edições. “Conto sempre a história de quando a conheci; ela estava a apresentar o seu livro na FNAC; era uma senhora muito modestamente vestida com uma malinha, e as pessoas olhavam um bocadinho desconfiadas. A certa altura, a Adília disse ao Valter que tinha umas pagelas para distribuir e pediu autorização para fazê-lo. Levantou-se e começou a distribuí-las (saiu-me o Menino Jesus de Praga!). Deteve-se perante mim e disse: sabe, tenho uma amiga a quem Deus se revelou. Eu fiquei desconcertado e apenas respondi: apresente-lhe os meus cumprimentos. E um amigo com quem estava perguntou-me logo se eu tinha mandado cumprimentos a Deus.” 

A busca por novos talentos também se estende à música. É uma espécie de olheiro, como no futebol. “Vou muitas vezes por esses bares de Lisboa e do Porto ver coisas.” A título de exemplo, aponta Bia Maria, mas também nomes como Dead Combo, Samuel Úria, B Fachada ou A Garota Não, que quando participaram nas Quintas de Leitura eram pouco conhecidos. “Lembro-me, em plena pandemia, de um concerto maravilhoso que A Garota Não deu no auditório do Pavilhão Rosa Mota, com uma plateia de 400 pessoas (por causa do distanciamento social, estavam sentadas cadeira, sim, cadeira, não) e quase ninguém a conhecia na altura.”  

Quem conta o Porto João Gesta

© Ana Caldeira

Em cima da cabeceira  


“Chegue a que horas chegue a casa, adormeço em cima de um livro de poesia; tenho que ler sempre e tenho a mesinha de cabeceira cheia de livros, e tiro um à sorte.” Neste momento, está a ler Se Eu Quisesse, Enlouquecia, a biografia de Herberto Helder, da autoria de João Pedro George, e o novo livro da Francisca Bartilotti, ainda por publicar. 


Neste momento, “o autor que mais lhe enche as medidas, a nível de solidez e de intensidade de escrita,” é José Carlos Barros, a quem reconhece “um humor subtil”. E, a propósito, lê o poema “A Ditadura dos Hipermercados”: No mundo há cinco continentes./ Na Baixa da Banheira vai abrir o sexto.  


Continua a descobrir a poesia do Cesariny, e aponta “poetas maravilhosos que são cada vez menos lidos”, como António Ramos Rosa ou Ruy Belo. “Há poetas que saíram de moda, e contra mim falo, lê-se pouco Ruy Belo nas Quintas da Leitura…” 

O programador adianta que a sessão de dezembro das Quintas de Leitura terá como mote O Futuro de Portugal depende de dez homens e de um bom guarda-redes, título pedido emprestado a um poema do Carlos Mota de Oliveira, que faz questão de nos ler: Um bom guarda-redes era o Damas, que sabia que ninguém olha para uma baliza que não sofra golos. E, ao voar, mostrava que não há acto realmente mais político do que defender uma grande penalidade.

Quem conta o Porto João Gesta

Cartaz das Quintas de Leitura © Mariana, a miserável

O vício do Porto  


“Foi sempre a minha cidade.” Gesta não faz parcimónia no uso dos pronomes possessivos para se referir ao Porto. “Quando trabalhava nas madeiras, fazia saídas com frequência, mas, como dizia o Manuel António Pina, quando o avião estava a sobrevoar a ponte e a chegar ao Porto, era a emoção maior. O Porto, com as suas chuvinhas seguidas de 10 dias e com aquele nevoeiro sebastianista, é uma cidade fascinante.”


A propósito, lê-nos o poema “Ponte da Arrábida”, de Jorge Sousa Braga: Quando vens de sul, ao chegar à ponte,/ desaceleras um pouco para poderes olhar a escarpa e o rio./ Nenhuma outra cidade se oferece assim a quem chega/ como uma cadela permanentemente com cio. E continua: “Como escreveu Sousa Braga, esta cidade não é uma cidade, é um vício. O [José Gomes Ferreira] escreveu que o Porto é a cidade onde a palavra liberdade é menos secreta. É a cidade da liberdade, da resistência. Tem o poder de nos embalar e de nos enfeitiçar. Leva-nos ao colo sem nós darmos por isso.”  


Pedimos que nos trace um mapa afetivo da cidade. Enuncia alguns dos seus espaços prediletos, mesmo aqueles que já só estão de portas abertas na memória. “Só me faltava viver no Aniki Bobó e no Meia Cave; essa dimensão da Ribeira desapareceu”, lamenta, mas regozija-se que o Pinguim, dinamizado por Rui Spranger, continue a ser “um espaço importante” para ler e divulgar poesia. “Os miúdos levam poesia e podem ler livremente.” O Passos Manuel (“gosto de lá ir pela amizade com o Becas”), o Maus Hábitos e o Lusitano são outros sítios de eleição. “Quando estou bem disposto é ao Lusitano que vou; é o espaço a que eu acho mais graça, é aquele de que gosto mais. E muitos dos shows de transformismo que trago às Quintas de Leitura são sugestões do Mário [Carvalho]. Diverte-me muito, o Lusitano.” 

A Poesia e a Revolução: uma vontade de transtornar o mundo 


Gesta acredita na Revolução, mas, para já, apenas vê revolta. “Tenho a ideia de que esta geração é um pouco mais conservadora do que a minha; esta geração anda revoltada, mas não é revolucionária”, declara. “Continuo à espera de uma revolução que seja muito mais profunda do que as revoluções económicas; uma revolução de costumes, a revolução do corpo, em que o toque seja permitido sem estarmos na defensiva, e que, no fundo, prevaleçam as duas bandeiras que são as de sempre na Feira do Livro do Porto:  a liberdade livre, como diria o Rimbaud, e o amor”. Porque, lamenta, “falta amor no mundo”. 

 

O programador cultural defende que a poesia é, sobretudo, gesto de “ação e transformação do mundo”. “Acho que é através da escrita poética que nós temos uma visão mais clara e mais vertiginosa do mundo. A cultura dá-nos armas para compreender melhor o mundo e agir sobre ele; é importante interpretá-lo para depois, no momento seguinte, podermos transformá-lo. Isso é que é a Revolução. O poeta deve transformar o mundo, e transtorná-lo, como dizia Cesariny”, remata. 

Quem conta o Porto João Gesta

© Ana Caldeira

Partilhar

LINK

Relacionados

Quem conta o Porto João Gesta
agenda-porto.pt desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile