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Carlos Tê © Guilherme Costa Oliveira
Chama-se Carlos Monteiro, mas toda a gente o conhece por Carlos Tê. Tê de “tarado musical”. A alcunha vem desde os tempos da adolescência e atesta a sua veia melómana. É o autor de letras de canções que todos sabemos de cor, mas de que ele próprio diz não se lembrar. “Tenho dificuldade em decorar. Mesmo as canções que eu mais amo de outros, não as sei de cor; sei as melodias”, confessa.
Além de letrista, tem vindo a publicar diferentes géneros literários – poesia, contos, romance e teatro. O seu último livro, A Invenção do Canto e Outros Versos, da série "Poema Letra" da coleção Plural da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, reúne letras da sua autoria que se tornaram “clássicos da canção”, como “Porto Covo”, “Jura”, “Porto Sentido” ou “Chico Fininho”, de Rui Veloso, mas também “Problema de Expressão”, dos Clã, ou “Primeiro Beijo”, dos Cabeças no Ar, entre muitas outras.
Marcamos encontro na Feira do Livro do Porto, onde participou como convidado no ciclo “É Urgente o Amor”, para uma conversa sobre letras e poemas, mas também sobre música, elemento fulcral na sua vida. E começamos precisamente pela música. Hoje, Carlos Tê queixa-se da “falta de silêncio” e do uso abusivo da música como forma de preencher silêncios. “A música deixou de ser misteriosa, está sempre a ser oferecida”, atira.
“A nossa relação com a música mudou. A música passou a ser ouvida de outra maneira. Não quer dizer que se ouça mais ou menos. A importância é que é outra. A nossa atenção está a ser disputada por muitas mais coisas. Por um lado, isso é bom, é sinal de que há mais coisas a acontecer, mas eu cresci com essa ideia de que todas as coisas vêm dali; tudo o que é misterioso, tudo que é apoteótico, tudo que é cifrado, está ali na voz”, concretiza.
Neste sentido, Carlos Tê lamenta que a música tenha “perdido centralidade” na vida das pessoas e nos próprios festivais de música. E, a propósito, partilha a sua experiência no Porto Primavera Sound, em 2016: “Fui ver a PJ Harvey, uma artista que eu adoro; cheguei um pouco tarde, olhei para a frente e vi três mil indefectíveis, que já eram experientes – eu não era experiente – todos acumulados à volta do palco porque já sabiam…, mas eu fiquei cá atrás. E ninguém estava a ouvir. Toda a gente a circular, toda a gente a beber cerveja, e eu sempre que mudava de lugar no concerto levava com gente a falar. Aqueles que queriam mesmo ouvir estavam lá à frente.” E continua: “Mais perverso ainda é esta coisa de haver mais palcos [com concertos em simultâneo] e mesmo um concerto como aquele, com um 'sonzaço', com um espetáculo de luz bonito, sempre com o efeito de ir ao escuro e ao silêncio, era totalmente sabotado pelo barulho e pelas luzes que vinham de outro palco. Eu pensei: Porra, isto é a conspurcação absoluta! A música morreu! – Quer dizer, a música existe, mas não com aquela solenidade que tinha. Eu tive a noção que estava no velório [da música].”
Numa época em que a música é consumida sobretudo através das plataformas de streaming, Carlos Tê evoca a era dos vinis: “Ouvia-se um disco de uma maneira quase reverencial”, diz, acrescentando que costumava juntar os amigos para uma escuta conjunta. “Cada um tinha a sua relação íntima com uma determinada canção – não quer dizer que não se continue a ter, mas agora é diferente; saltitante, hiperativa, e tem que ver, também, com aquilo que a tecnologia nos foi dando.”
Carlos Tê © Guilherme Costa Oliveira
A Invenção do Canto e Outros Versos © Rui Meireles
A Invenção do Canto
Aos 15 anos, escreveu a primeira canção, em inglês (chamava-se “oh life, don’t die”, diz a rir). Porque cresceu em ditadura, chegou a ter “aversão” à língua portuguesa. “Sentia que estava enclausurado nesta língua”, declara. Por isso, para Carlos Tê, “viver e pensar noutra língua era libertador”. Tinha 18 anos quando aconteceu o 25 de abril e aí “houve um processo de reconciliação” com a língua portuguesa. Mas sempre se sentiu mais ligado à música anglo-saxónica (“a música pop era uma espécie de postigo sobre o exterior”), embora reconheça que, “muitas vezes, nem prestava muita atenção às letras”. “Eu cresci a ouvir as canções e a ignorar completamente as letras. Estava-me nas tintas, porque eu só ouvia as vozes”, conta. É por isso que no prefácio do livro A Invenção do Canto e Outros Versos faz referência à importância da voz.
“As vozes são aquilo que nos aproxima ou não das coisas.” Segundo ele, a voz é “a flecha da canção”. Para o letrista, as palavras “são intrinsecamente fortes”, mas é a voz que as atira para uma dimensão que ele próprio, que as escreveu, "não estava à espera”. “Esse é um mistério com o qual eu me tenho vindo a debater e que me continua a fascinar ao longo do tempo”, sublinha.
Apesar de considerar que “a voz é tudo numa canção”, admite que quando escreve uma letra nunca pensa em quem a vai cantar e, talvez por isso, não costuma escrever por encomenda. “Pode acontecer, mas é raro.” Segundo Carlos, as canções “têm uma necessidade qualquer de aparecer”. “Nunca se sabe o que é que vai ser; se vai ser uma boa canção, se vai ser fraca, se vai ser rápida, se vai ser lenta, não sei, não faço a mínima ideia. Porque aquilo é um processo de crescimento. Até pode não ser nada. A maior parte das vezes, não dá em nada”, ri-se.
A descoberta da poesia
Nasceu no Porto, em 1955, e aos 14 anos teve o seu primeiro emprego num escritório no ramo automóvel. Aos 24 anos foi estudar Filosofia, mas preferia ter-se formado em História. Conta-nos que “sempre teve o gosto pela palavra, sobretudo pela questão sonora”. “Há na palavra uma acústica... E há palavras bonitas, portuguesas, e depois torna-se um bocado um jogo, uma coisa lúdica, começam-se a ligar as coisas...”
O autor partilha connosco a descoberta de “um texto muito importante” cuja leitura mudou a sua perspetiva sobre a escrita e sobre a poesia. “Era uma canção de que eu não gostava muito, mas o poema era fabuloso, ‘Lágrima de Preta’, de António Gedeão [publicado em 1961]; é um poema feito por um químico e está ali a desmontagem do racismo; isto em 1970, e aquilo para mim foi poesia pura. E vinha ao encontro das minhas incógnitas, das minhas interrogações. Para mim, a poesia passou a ser aquilo”, concretiza. E acrescenta: “Mas também era a poesia analfabeta do António Aleixo, aquela poesia popular que desmonta os ricos. Eu pensava: Estas pessoas também sabem; não sabem escrever, mas sabem. Também há poesia aqui. Comecei a perceber que a poesia podia estar em qualquer lado. E quando ouvi o trabalho do José Mário Branco e do Sérgio Godinho, que estavam num estádio muito superior, pensei que era por ali que queria ir. E depois proporcionou-se com o 25 de Abril, com todas as portas abertas…”
São letras ou são poemas?
Embora considere que o processo de escrita de letras e de poemas “é semelhante”, e que “às vezes, um poema e uma canção começam com a mesma frase”, Carlos Tê faz uma distinção entre ambos: “escrever um poema é uma viagem de longo curso, que exige maturação, pode demorar meses; e uma canção é uma viagem quase vertiginosa, muito rápida. A semelhança entre eles será, por vezes, uma frase que faz a faísca, que lança alguma coisa.” O letrista sustenta, ainda, que enquanto a letra da canção “só ganha força quando é cantada”, no poema existe “uma solidão magnífica”.
Mas, afinal, não se podem confundir letra e poema? Um poema não pode virar canção e uma letra não pode ser poesia? Carlos Tê admite que sim. “Quando é que uma canção pode ser um poema? Entendo que os textos ganham uma espécie de vida, comunicam com o criador e mandam no criador. O criador só tem de saber ouvir, estar atento. Sinto que há coisas que querem ir para um determinado lado... Às vezes, começam por ir para um lado e depois vão para outro, e é preciso ter a humildade de perceber que aquilo tem uma vontade própria, e é preciso estabelecer um pacto qualquer”, conta.
Carlos Tê © Guilherme Costa Oliveira
“Sou um bocado fascinado por personagens sem história.”
Álbum Ar de Rock, 1980 © Fonoteca Municipal do Porto
As letras das suas canções estão povoadas de personagens – desde o "Chico Fininho", passando pela "rapariguinha do shopping" até à "Guida peituda". Nenhuma delas, afiança, é real. “As histórias reais para mim nunca são literais. Há alguma coisa da realidade que serve de ponto de partida, mas depois imagino. Passo a vida a fazer batota”, ri-se. “Começo a acrescentar coisas; é pura batota da escrita típica. Não há aquela literalidade de ter de respeitar a história daquela senhora”, conta. “O próprio Chico Fininho não existe, mas houve pessoas que se convenceram que existia, que me vinham dizer que sabiam quem ele era.”
Uma canção sobre unhas de gel
Carlos Tê reconhece que é “um impressionista” que se interessa por pessoas comuns que encontra no dia-a-dia. “Sou um bocado fascinado por personagens sem história, sem dignidade histórica. ‘Porquê escrever sobre um Chico Fininho, um desgraçado?’ Por que não? Eu sou um bocado fascinado por esse tipo de personagens. A literatura é que dá dignidade àquilo que aparentemente não tem”, sustenta. Neste sentido, adianta que “uma das últimas coisas que gostou imenso de ter escrito é a letra de uma canção (inédita) sobre unhas de gel”.
“Nunca pensei que fosse possível escrever uma cena sobre unhas de gel, mas uma vez estava no Pingo Doce e vi uma rapariga muito bonita na caixa, e ela tinha unhas de gel e batia com as unhas nas teclas com uma perícia absolutamente brutal. Então, pensei na vida daquela mulher, que se calhar tinha um filho a quem mudava as fraldas, e descascava batatas, como eu descasco, e assim por diante”, conta, divertido. E acrescenta: “Eu não descansei enquanto não fiz uma canção sobre aquele tipo de personagem suburbano. E eu acho que é possível ter poesia aí. A poesia é o que a gente quiser que seja. Isso é que me move muitas vezes. As pessoas felizes não têm muito interesse. É um bocado aquela coisa de que as pessoas felizes não dão grandes personagens.”
Não são poucas as letras das suas canções que tomam o Porto por sujeito. Aliás, muitas delas acompanham a história da cidade, como “a rapariguinha do shopping”, que retrata a abertura do primeiro centro comercial na Invicta. “É a transição da pequena loja de fazendas para a loja ao cimo da escada rolante, que tem estatuto, é uma coisa distinta”, graceja.
O Comboio do Interior
Aos 69 anos, continua a escrever canções e diz que “o seu grande motor é a curiosidade”. Atualmente, está a trabalhar num projeto que quer transformar em disco: O Comboio do Interior. “Trata-se de um conjunto de canções que contam várias histórias; quase todas as letras têm uma referência a uma linha desativada, a um apeadeiro… Um maquinista viaja até localidades do interior do país e vai encontrando pessoas”, revela. O autor conta-nos que este projeto tem que ver com “o fascínio” pelas suas raízes paternas, “que são avós analfabetos do Douro e de Trás-os-Montes profundo”. “É a continuidade da canção “A Gente Não Lê”, que escrevi em 82; esse foi o ponto de partida”, acrescenta.
“Ainda hoje, essa é das letras de que as pessoas mais me falam. É impressionante como é que 40 anos depois há pessoas que ainda me vêm falar dessa letra”, espanta-se, e revela que a escreveu quando a avó morreu. “Foi uma canção de despedida de alguém a quem eu não dei muito valor em vida, mas de quem eu herdei muita coisa.”
Confessa-nos que gosta pouco de olhar para o passado porque, diz, “o grande perigo do criador é a autocontemplação; olhar para trás é o princípio do fim”. Ainda assim, perguntamos se não há letras de que ainda hoje se orgulha, considerando que fazem parte do imaginário coletivo português. Aponta “A Gente não lê”, “Problema de expressão” e “Porto Sentido”. “Há letras um bocado estranhas que dizem isto ou aquilo às pessoas, e eu às vezes não percebo porquê”, diz, divertido.
"A gente não lê" em A Invenção do Canto e Outros Versos
Contudo, insiste que a voz é o mais importante. “As letras de canções não têm de ser tratados de filosofia. As canções de que mais gosto, [não gosto delas] por causa das letras; a letra não é o mais importante,” diz. “Para mim, continua a ser a voz; a maneira como aquela voz percorre o espaço e vem ter comigo. São fenómenos como a Amy Winehouse, por exemplo. Eu não quero saber o que é que a Amy Winehouse está a cantar; quero lá saber se é a lista telefónica ou a lista de compras. Não quero saber. O que eu quero saber é que aquela voz me toca. Se lhe puder meter uma letra incrível, aí estamos a somar. Fantástico. Mas, para mim, isso não é o essencial”, concretiza.
Em Portugal, aponta Salvador Sobral como “um desses fenómenos”. “É, talvez, o maior cantor da sua geração, e a prova é que ele ganhou um festival impossível de ganhar sem as pessoas perceberem o que ele estava a cantar. A voz dele estava cheia de qualquer coisa que tocou finlandeses, letões... que não sabiam o que ele cantava. É o tal mistério. É um mistério quase religioso. Não há volta a dar a uma grande voz. E quando digo grande, não é uma voz que faz o pino; não é aquela voz que faz 30 por uma linha, que sobe e desce. Não, não tem nada que ver com isso. Às vezes são três notas. E com aquelas três notas ficamos a pensar: o que é isto?!”
Por Gina Macedo
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