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Quem conta o Porto acrescenta um ponto
Num Porto que é liberdade, Carla Oliveira vive na casa que sempre sonhou
Entrevistas
QCP: Carla Oliveira

O que pensamos quando, de um dia para o outro, os movimentos que consideramos inatos deixam de responder? E o diagnóstico, que esperamos com ansiedade, traz uma notícia que não esperávamos? Colocamos a cabeça debaixo da almofada ou olhamos em frente, vendo o tal “copo meio cheio”? Carla Oliveira descobriu, aos dez anos, que uma doença degenerativa muscular lhe iria retirar a capacidade de andar. Depois da revolta e da dor, é hoje uma atleta de alta competição feliz pelo que alcançou. Onde os outros viram o fim, Carla viu o início. Uma história de liberdade, sem as amarras que uma cadeira de rodas pode trazer à vida de qualquer um.

Lembrar o que já se teve e saber que não se voltará a ter. Guardar essas memórias num sítio especial e saber que nunca mais se voltará a sentir o mesmo, da mesma forma. Tudo isto sem vitimização, sem pena de si própria, encarando a realidade como ela é. Sem os “ses” que ela traz, que apenas servem para alimentar uma falsa utopia de vida que nunca vai voltar a existir. Carla Oliveira não vive nessas brechas que os tais “ses” abrem, ainda hoje, no seu pensamento. Cada uma delas é tapada com um pensamento positivo, uma memória feliz, um sorriso de alguém que lhe lembra que o que teve de ser foi, realmente, mais forte. E contra a força das circunstâncias, a cabeça conta mais que o corpo.


“Às vezes as pessoas dizem-me que se eu não tivesse caminhado talvez não ficasse tão triste. Porque eu já soube o que era caminhar e hoje deixei de conseguir.” Carla nasceu com todas as faculdades, uma criança normal que nasce com a capacidade de se mover em liberdade. Até que aos dez anos tudo muda, o corpo deixa de dar resposta, os movimentos tornam-se menos imediatos. Aos oito anos sentiu os primeiros efeitos. Não ligou, criança inconsciente que procura apenas o deleite da brincadeira. Foi diagnosticada com uma doença degenerativa muscular que lhe afeta os membros inferiores e a levou rapidamente a uma cadeira de rodas, mas essa nova condição não a colocou no lugar da “coitadinha”.


Quando me dizem isso, eu respondo que é verdade, já não consigo andar, mas foi bom enquanto durou. Foi bom ter essa possibilidade. Uma das coisas que mais gostava de fazer era andar de bicicleta. E andei. Portanto, sei o que é andar de bicicleta e sinto-me privilegiada por isso, por ter tido essa oportunidade”, atira Carla, a sangue-frio.

QCP: Carla Oliveira

© Rui Meireles

É grata pelo que tem, pelo que conseguiu, não se deixando limitar pelos outros, nem pelo que dizem. “Se eu não me tivesse atrevido a sonhar, não teria conquistado as coisas que conquistei até hoje”. Contra tudo e todos, foi estudar. Terminou a licenciatura. Frequentou e concluiu o mestrado. Arranjou trabalho. “Diziam-me: ‘ah, ela até conseguiu trabalhar, mas nunca vai casar’. E casei. Depois diziam: ‘Ok, mas nunca vai constituir família’. E eu fiquei grávida. E tive uma filha. Por isso, tudo é possível, não podemos mesmo deixar que a sociedade limite, nos retire essa liberdade de podermos ser iguais na nossa singularidade”, resume Carla.

QCP: Carla Oliveira

© Rui Meireles

Da revolta ao entusiasmo


Carla Oliveira tem hoje 34 anos e sonhou tão alto que chegou onde nunca imaginou. Aos dez anos, e perante a angústia do desconhecido que um relatório médico lhe descrevia, rejeitou o que lhe parecia ser uma porta de saída (ou entrada) nessa tal “nova realidade”: o desporto adaptado. “Não tinha ninguém na minha família com cultura desportiva e nenhum professor me tinha falado dessa possibilidade”. Cresceu a ser colocada de lado nas aulas de educação física, por não haver “enquadramento” para a sua condição. “E para mim o desporto significava algo mau, algo que me discriminava e por isso não queria ter essa ligação”, revela.


Passou aulas inteiras a ver correr, a ver jogar, a ver os outros a serem felizes. A ver. Apenas isso. Até que, aos 14 anos, a levaram a experimentar o boccia, um desporto pensado em exclusivo para atletas com necessidades especiais. “Não gostei, era parado, muito calmo e não queria assumir esse compromisso. Mas alguém viu potencial em mim.” Foi no antigo Estádio das Antas que experimentou, mas não conseguiu criar a tal ligação. “Foi uma experiência à qual não dei tempo de gostar, também”, assume.


Levou seis anos a insistir, a insistir para que desse a tal oportunidade ao desporto. Nesses anos, claramente que o virar de costas ao boccia era sinónimo de “muita revolta, de lidar mal com tanta injustiça”. Pedia ao professor que a deixasse na sala, sozinha, enquanto os colegas praticavam as aulas no pavilhão. Era mais a violência do olhar que a condição física em que se encontrava.

Aos 20 anos, cedeu. Deu a chance que o desporto esperava de entrar na sua vida, de ser parte do dia. Menos contrariada, mas mesmo assim desconfiada, pensou que seria “coisa para dois, três anos”. Hoje, já lá vão 14 anos de atividade ininterrupta.

Clube do coração que lhe preenche os dias


“Fui-me apaixonando pela modalidade. Fui evoluindo, comecei a competir e a crescer dentro deste desporto. Não entrei nesta modalidade a pensar que um dia ia aos Jogos Paralímpicos e que seria uma atleta de alto rendimento.” A verdade é que chegou a esse nível de elevado potencial, com presenças nos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro e de Tóquio. Voltará lá, ainda este ano, a Paris. Por mérito. Por não ter desistido.


É hoje um dos nomes mais reconhecidos do boccia nacional, é atleta do Futebol Clube do Porto desde o início, um clube que trata do desporto adaptado como o restante, com um departamento focado apenas na preparação destes atletas especiais. Tem direito a todos os tratamentos como um atleta normal, de acompanhamento médico a apoio nutricional, de treino físico a terapia psicológica. Tem treinos diários, como todos os outros, treinadores que vibram com ela quando ganha, que choram com ela quando a meta não é alcançada. E ela nunca imaginou uma vida fora do clube do coração.


“Isto fez ainda mais sentido por ter sido no Futebol Clube do Porto”, admite, entre risos. “Porque aqui sinto que o investimento sempre foi real. Há quem pense que o desporto adaptado é uma coisa para ‘passar o tempo’, é algo para ‘entreter’ as pessoas com deficiência, que é algo mais ‘recreativo’. Aliás, a mim dizem-me ainda mais: que estou entretida e até viajo. Há ainda um desconhecimento sobre o desporto adaptado”, revela a atleta.

QCP: Carla Oliveira

© Rui Meireles

Viajar é, de resto, uma dor de cabeça. Porque “ninguém sabe o que é fazer viagens longas numa cadeira de rodas”, com a periodicidade com que as faz. Mas há um desejo que ultrapassa isso tudo, um animal que está dentro dela e que precisa de ser alimentado com provas e mais provas, marcas pessoais e conquistas. De muitas conquistas.

QCP: Carla Oliveira

© Rui Meireles

Boccia como jogo individual


O boccia assemelha-se a um jogo da malha, da petanca. Existe uma bola branca, que é o foco do jogo, e o objetivo é aproximar as bolas de cada atleta dessa bola branca. Existem seis bolas vermelhas e seis bolas azuis, e o jogo pode ser feito individualmente, em duplas ou em grupos. É composto por quatro parciais e ganha quem melhor pontuação conseguir nesses quatro momentos. “Quem assiste a este desporto acaba muitas vezes por perder o interesse porque não percebe o que estamos a fazer. É um jogo altamente estratégico e exige algum pensamento”, revela a atleta, que hoje joga individualmente. Mas tudo começou a pares, “porque era aquela questão de estar com alguém que até era melhor que nós e que nos dava alguma motivação”.


Hoje, sozinha, está por sua conta e risco, consegue calcular melhor as jogadas, decidir o momento que lhe parece ser o mais eficaz para fazer esse lançamento. “Aguento, agora, a nível emocional e psicológico, o jogo de uma forma diferente.” Porque encontrou o ponto de equilíbrio, “a disciplina, a autodeterminação, a resiliência”. “Quando comecei, apenas perdia os jogos e cheguei a questionar-me se estaria no caminho certo”, conta Carla. “Mas foi o facto de ter perdido tanto que me deu consciência do que eu tinha de trabalhar em mim; não falo apenas psicologicamente, mas também da parte psicológica. Foi preciso passar por todo este processo de muitos anos a perder para conseguir dar um salto e evoluir na modalidade”, resume.

Um Porto que é casa


Dentro de alguns meses irá integrar a comitiva paralímpica em mais uns Jogos de Verão. Lá estará em Paris, com a mesma tenacidade de sempre para continuar a ser a melhor. A melhor das melhores.


Mas voltará sempre ao ponto de partida, à cidade que é dela, a cidade que lhe enche a alma de liberdade. “Para mim o Porto significa liberdade, porque foi aqui que descobri que era muito mais autónoma do que aquilo que eu imaginava. Em Lourosa, de onde sou natural, não tinha esta liberdade arquitetónica para me deslocar autonomamente na cidade. Aqui tenho, há transportes adaptados, passeios com mais condições”, revela.

QCP: Carla Oliveira

© Rui Meireles

O Porto trouxe-lhe a capacidade de perceber que, afinal, o problema não é dela. Porque aqui, na cidade que lhe enche o coração, “consigo ter uma vida, consigo ir a um banco tratar dos meus assuntos, consigo ir a uma loja, consigo deslocar-me para aqui e para ali, porque o Metro é extremamente acessível”, destaca.


Nem tudo são rosas, mas o presente é melhor que o passado. O futuro, esse, será ainda melhor. Carla quer acreditar nisso. Acredita ainda mais nisso quando abraça a pequena Gabriela, de um ano, de cabelos loiros e esperança no olhar. Sabe que é aqui, neste “Porto que é também casa”, que se vai manter.

Texto por José Reis

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