PT
Mithra é uma divindade persa e um dos três pilares fundamentais do zoroastrismo, religião fundada cerca de 2000 anos antes de Cristo pelo profeta Zaratustra — o mesmo referido pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche na sua obra seminal do século XIX “Assim falou Zaratustra”. Ainda antes de ser incorporado no zoroastrismo, a figura de Mithra tinha sido inscrita nos textos védicos na Índia e, após as incursões asiáticas do grego Alexandre, o Grande, foi uma figura de referência na Macedónia, tendo sido encontradas ali diversas peças de cerâmica com ilustrações da divindade como figura central.
Como deus da luz, da justiça, dos contratos e, acima de tudo, do sol, parece natural que a sua influência tenha radiado a tanta distância da sua Mesopotâmia natal. Nos territórios atuais da Mesopotâmia encontramos um país herdeiro de toda a tradição persa: o Irão. Longe dos tempos da modernização e exploração cultural da década de 70, o Irão contemporâneo está sob o domínio de aço da teocracia do ayatollah, com uma polícia da moralidade que garante, entre um muro sólido de outras repressões, um papel de subjugação da mulher. "As mulheres estão a quebrar as leis, elas saem à rua sem véu e tentam viver em liberdade. Mas nos últimos seis meses, recomeçaram as execuções. Quase três pessoas por dia.", diz-nos Aida Sigharian, da Associação Iraniana Mithra.
Aida parte de Teerão perseguindo a música: emigra para a Holanda para estudar piano. Em Amesterdão, encontra uma cidade ampla, onde cabem todas as expressões artísticas e todas as liberdades pessoais que se exigem. É lá que, também, encontra algo mais: um namorado português, com quem decide mudar-se para Braga. A cidade parecia não corresponder ao esperado e, pouco depois, há uma nova tentativa em Viana do Castelo. Embora o charme dessa cidade minhota fosse inegável, é no próximo salto que encontra a segunda paixão portuguesa que nunca mais largou: a cidade do Porto.
“Gosto mesmo muito de viver no Porto. Estou cá há cerca de 15 anos, e já não deixo ninguém falar mal do Porto perto de mim.” Foi no Porto que encontrou também um local de conforto profissional. Ensina piano no Conservatório de Música do Porto, um local onde “temos alguma liberdade e dá-se responsabilidade para sermos efetivos no trabalho”. É, aliás, numa sala de aulas do Conservatório que falamos com Aida, que se senta no banco do piano, mas de costas voltadas para as teclas apenas durante este momento. “Também tenho de dizer que, no último ano, com tudo o que aconteceu e eu estava a fazer, o Conservatório apoiou-me bastante”. E, o que aconteceu foi a criação da Associação Iraniana Mithra.
© Nuno Miguel Coelho
© Nuno Miguel Coelho
Em setembro de 2022, Mahsa Amini, uma jovem estudante curda, encontrava-se a passear com o seu irmão em Teerão. Foi detida pela polícia da moralidade por estar a usar mal o seu hijab, não cobrindo todo o cabelo. Foi dali levada para o que seria um briefing sobre bons costumes, mas poucas horas depois dá entrada no hospital em coma, após sofrer tortura às mãos dos polícias. A onda de protestos que se insurgiu com mais um caso de violência repressiva alastrou por todo o mundo, chegando também ao Porto. É numa destas manifestações que Aida entra em contacto alargado com a pequena comunidade iraniana da cidade — estimam-se entre 200 a 300 pessoas — que até então se coordenava informalmente, através de grupos de Telegram.
Aida assume, então, a vontade de criar uma associação capaz de juntar esta comunidade, de a organizar para apoio mútuo. E, de raiz, uma sensibilidade para a exploração artística: o primeiro momento público da associação acontece com a exposição “Mulher, Vida, Liberdade” (referência a um slogan de protesto curdo), que esteve patente na Junta de Freguesia do Bonfim até 24 de fevereiro deste ano. Uma exposição coletiva com 11 artistas, com momentos musicais na inauguração e no encerramento. Nas atividades com os associados, promovem leituras de histórias infantis em persa para que as crianças que nasceram já portuenses não percam a ligação com a língua e a cultura dos pais.
Entretanto, no Irão do ayatollah, após a pujança inicial dos protestos nas ruas, houve um reforço da opressão violenta, tendo as execuções aumentado de ritmo nos últimos meses. Mas no Porto há uma pequena associação que mantém viva a ideia da luz de Mithra, uma ideia de justiça que também irradiou, em tempos, de uma parte do mundo onde ela agora brilha menos um pouco.
Vista da exposição "Mulher, Vida, Liberdade", © Associação Iraniana Mithra
por Ricardo Alves
Partilhar
FB
X
WA
LINK
Relacionados