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Presépio de Delfim Manuel © Inês Aleixo
Popularizado por São Francisco de Assis no século XIII, o presépio, representando o nascimento de Jesus, é hoje um elemento universal que une tradição cristã, arte e, muitas vezes, o toque pessoal de quem o constrói. “Tem o burrinho do presépio?” – A pergunta é feita por uma cliente que acaba de entrar no nº 215 da rua de Santo Ildefonso à procura de figuras para montar o seu.
São às centenas, os presépios originais que encontramos na Canjirão Artesanato vindos de várias partes do país e moldados e pintados por mãos habilidosas que transformam barro, cortiça, vidro e outros materiais inesperados em verdadeiras obras de arte.
Somos recebidos por Ricardo Amora, grande conhecedor e impulsionador do artesanato português que, na sua pequena loja onde cabem dezenas de peças por metro quadrado, dá palco ao talento de cerca de uma centena de artesãos e artistas, novos e experientes.
Depois de, há quatro anos, enfrentar o risco de encerramento, devido à venda do prédio, este espaço permanece na cidade como uma espécie de templo da arte popular portuguesa, visitado não só por colecionadores e amantes de artesanato, mas também por muitos turistas. Nesta altura do ano, com o Natal à porta, naturalmente a procura aumenta.
A loja especializou-se em presépios e em ‘santos antónios’. “Trabalhamos com muitos colecionadores de todo o país; os maiores colecionadores do país são cá clientes, e vem muita gente de Lisboa e alguns até lá de baixo do Algarve. Alguns vêm ao Porto de propósito”, diz, assegurando que ali “encontram coisas diferentes, que provavelmente não encontram noutro lado”. “Nós temos várias peças antigas, que já não estão no mercado, de artesãos que já faleceram há algumas décadas”, refere.
Ricardo Amora com um pombal com presépio da autoria dos Irmãos Baraça © Inês Aleixo
Presépios em barro negro de Júlio e João Alonso © Inês Aleixo
Natural do Candal, em Gaia, este antigo professor de matemática abriu a Canjirão Artesanato faz este mês de dezembro 36 anos. “Era uma paixão minha, já de jovem, ter assim uma lojinha. Isto foi uma maluquice, que eu não vivo disto”, conta. “Quando abrimos a loja, corremos o país todo, de lés a lés, a contactar os artesãos; há cerca de 20 anos, deixámos algumas regiões, mas ainda vamos ao Alentejo e também trabalhamos muito com artesãos da zona norte, sobretudo da zona de Barcelos, das Caldas da Rainha, de Mafra, e de várias zonas que têm tradição em olaria”, explica. “Nós procuramos ser diferentes desde o princípio”, frisa.
Ricardo orgulha-se de preservar e partilhar a obra de artesãos que marcam a história do artesanato nacional. Exemplo disso é a secção dedicada à “família Ramalho”, ou seja, aos descendentes de Rosa Ramalho, figura emblemática da olaria tradicional portuguesa, nomeadamente a neta, Júlia Ramalho, que “há quatro ou cinco anos deixou de trabalhar”, e os bisnetos Teresa e António Ramalho. “Esta é uma das apostas da loja”, admite. Há, também, uma secção dedicada aos presépios e figurado de Júlio Alonso, que faleceu recentemente, aos 96 anos, e de João Alonso, seu filho, ambos mestres do barro negro. “Há três gerações de artesãos na mesma família; falta-me aqui obras do neto”, diz, acrescentando que gosta de “juntar gerações”.
Presépio esculpido em madeira da autoria de José Matos
Presépio e outros trabalhos de Ana Sobral © Inês Aleixo
Ricardo mantém um caderninho onde vai anotando os dados biográficos dos artesãos, e costuma ser procurado por estudantes de Belas Artes, que querem saber mais sobre artesanato português, bem como por pessoas que querem identificar a autoria de peças que adquiriram e que não estão assinadas.
Dentre os vários artistas e artesãos nacionais, o especialista destaca o trabalho do ceramista Delfim Manuel, natural de Santo Tirso, que acaba de vencer o Grande Prémio Carreira do Prémio Nacional do Artesanato 2023. “Em miniaturas, é um dos melhores do país”. “Este aqui é um trabalho totalmente diferente, de muito pormenor e minúcia”, diz-nos, apontando para um presépio da sua autoria que custa 1.300 euros. “Quem é que faz isto? Não há ninguém a fazer.”
Ricardo enaltece, também, os trabalhos de Ana Sobral, artista das Caldas da Rainha, que “desenha com minúcia na própria cerâmica”. “Era artesã e tirou o curso de Belas Artes na ESAD, nas Caldas, mas já tinha uma veia própria. Foi sempre um pouco avançada; ela é muito boa. Ela desenha na pasta com o estilete e não há duas peças iguais. Está a ver aqui?”, aponta.
“Os presépios são muito procurados e, de há uns anos para cá, com a procura que há por parte dos colecionadores, os artesãos tentam fazer todo o tipo de presépios."
Cada presépio reflete a criatividade de cada artesão: há presépios que são uma adaptação dos pombais, da autoria dos Irmãos Baraça, de Barcelos, mas também minipresépios com as figuras vestidas com trajes típicos das regiões portuguesas, da autoria de um casal de artesãos de Santarém, e até peças mais contemporâneas, com José e Maria de lambreta, ou com Caretos de Podence, e em versões mais estilizadas, como os presépios de Vítor Lopes, também das Caldas da Rainha. “Vendi muitos para a América; os americanos adoraram isto totalmente estilizado, e ele é muito criativo”, diz.
O comerciante mostra-nos, ainda, trabalhos do artesão barcelense Carlos Dias: “Como é daltónico, e não consegue distinguir as cores, trabalha com dois tipos de pastas; com a porcelana fina, tipo Limoges, que é a parte branca, e com uma pasta grés, que depois vai dar estas nuances; são sempre peças diferentes.”
Alguns artesãos optam por materiais como folha de milho, batoques de cortiça, restos de madeira e desperdícios trazidos pelo mar para criar presépios, aliando criatividade e sustentabilidade.
Pombal com presépio dos Irmãos Baraça
Com quase quatro décadas de experiência no ramo, Ricardo considera que houve uma evolução no artesanato português, “sobretudo com o incremento das feiras, onde os artesãos começaram a ver o que os outros faziam”.
O colecionador conta que, juntamente com a sua esposa, Deolinda Rodrigues, formada em Belas Artes, chegou a dar formação a alguns artesãos. “Íamos ter com eles e dávamos dicas para fazerem alterações; agora já há mais formação, mas antigamente faltava formação estética, de design, e eles faziam coisas horrorosas”, ri-se. “Então, a gente ia e dizia: ‘não faça assim, corte aqui, não faça essa coisinha, — ai! mas é tão engraçadinho, diziam eles. — Não, corte aí!’ Mas muitos deles continuavam a fazer a mesma coisa. Coisas horrorosas”, insiste.
por Gina Macedo
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