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Setembro 2025
Corria o ano de 1833 quando se deu o cerco da cidade pelas tropas invasoras de Napoleão. Entre a colheita de mortos que traz a guerra, contam-se também os defuntos no episódio da Ponte das Barcas, quando uma ponte improvisada para Gaia cede e remete ao rio quem fugia dos soldados. Não fosse isto suficiente, no mesmo ano chega à cidade uma epidemia de cólera.
Este apocalipse portuense traz consigo uma sobrecarga dos locais de enterro da cidade, levando D. Pedro IV a autorizar a criação de um novo cemitério, junto à Igreja da Lapa. Fomos conhecer que memórias restam neste espaço onde os túmulos monumentais se erguem aos céus, num desafio à finalidade da terra.
Eis ossos carcomidos, cinzas frias,
Em que paraõ da vida os breves dias,
Mortal se quanto vês te não abala
Ouve a tremenda voz que assim te falla:
"Lembra te homem que és pó; e que dest'arte
Em pó, ou cedo ou tarde, hás de tornar-te"
As linhas gravadas junto à entrada da necrópole traem a sua índole romântica — um movimento que faria dos cemitérios locais de contemplação e meditação, com arruamentos e bancos onde os vivos se poderiam ver ao espelho em lápides de granito. Entre defuntos notáveis e jazigos monumentais, haveria demasiados focos para uma reportagem fotográfica do Cemitério da Lapa, pelo que aqui segue apenas uma seleção que possa convidar a uma visita mais demorada.
© Rui Meireles
© Rui Meireles
© Rui Meireles
Perto da entrada, encontramos aquele que pretendia ser o mausoléu de Luzia Joaquina Bruce e de João António de Lima. João era um comerciante de sucesso que encontrou no Brasil, para além da fortuna nos negócios, o amor da sua vida. Luzia, natural do estado brasileiro do Maranhão, teria, na sua ascendência, linhagem escocesa e linhagem africana — mas é no Porto que encontra a cidade onde viria a deixar uma extensa obra como benemérita.
Apesar de nunca se terem casado, uma vez que João era um homem com um casamento prévio, é a Luzia que este deixa toda a sua fortuna, e ela viria a usá-la para uma longa série de obras de caridade: para além de vários apoios a jovens pobres do Porto e do Maranhão, funda o Hospital da Lapa, do outro lado da rua deste cemitério. Embora Luzia tenha sido enterrada em Lisboa, pela relação estreita que manteve com a Santa Casa da Misericórdia, o mausoléu tem ainda vago o seu lugar, em frente ao qual se encontra o caixão e busto de João António de Lima.
© Rui Meireles
A dedicação conjugal continua um pouco mais abaixo, com a peça escultórica encomendada pela poetisa Maria da Felicidade do Couto Browne para o seu esposo Manuel de Clamouse Browne, filho do cônsul de França.
Uma escultura que desafia a rigidez do seu material numa peça de contornos que sugerem matéria orgânica e raízes, já se torna difícil ler o nome do falecido, gravado sobre a pedra em 1945. Mas podemos ainda ler os versos de quem mandou erigir esta escultura, para quem a relação com a morte era um lugar habitual:
Entre mim, e a espécie humana,
Que pode haver de comum?...
Se ainda não pertenço à morte,
Também não pertenço à vida;
É um mistério esta sorte
Especial e mentida.
© Rui Meireles
© Rui Meireles
A avenida dos casais notáveis encerra com uma curiosa pirâmide: as campas de José Mendes Braga, um importador de tabaco, e sua esposa Angélica da Natividade. Os túmulos encontram-se sobrepostos, e encabeçados por uma peça escultórica.
Trata-se da campa de um casal que faleceu sem descendentes, e que quis, desta maneira, homenagear o mais fiel membro da família. Reza a lenda que o cão representado na escultura acompanhou o casal nos seus últimos anos, e terá seguido os donos até este jazigo, para também ali vir a falecer.
De volta aos notáveis, chegamos ao local de repouso de uma das 'entradas' mais recentes. Faleceu no ano de 2021, a pintora e educadora Armanda Passos. Embora tenha nascido no Peso da Régua, é uma figura que abraçou o Porto. Estudou Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, quando este curso era então regido por Júlio Resende — e não mais deixou de ter o Porto como centro de gravidade.
Segunda Lídia Jorge, Armanda "não tinha modelo, não pertencia a movimentos, não alimentava estratégias, não tinha outra finalidade que não entregar-se ao mundo que a habitava”. Em vida, doou várias obras à Irmandade da Lapa — e junto ao seu túmulo podemos ver uma grande pedra tumular gravada com o seu último desenho.
© Rui Meireles
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As campas anónimas encontram o seu expoente máximo num mausoléu mandado erigir por um médico portuense (o único detalhe identificativo que pudemos apurar sem violar a privacidade dos mortos).
O mausoléu está identificado como "?_Ninguém", sobre uma vistosa porta a ferro forjado. Mantendo a anonimidade, este túmulo não deixa de convidar curiosidades, o que poderia levar a questionar quão legítimo seria o desejo de anonimidade do seu habitante.
De volta às figuras de maior vulto, é possível encontrar no Cemitério da Lapa a já centenária campa de Camilo Castelo Branco. Mais um caso em que os vivos ainda se debatem com o local de repouso final dos mortos — embora Camilo tivesse deixado por escrito o seu desejo em ser enterrado aqui, numa nota escrita poucas horas antes do seu suicídio. Enquanto o corpo do escritor não é transladado, pode conviver com uma coincidência curiosa — porque, a escassos metros da sua campa, podemos encontrar o jazigo de Manuel Pinheiro Alves, o marido da Ana Plácido — a mesma Ana Plácido cujo adultério com Camilo serviria de mote para Amor de Perdição.
© Rui Meireles
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Por fim, resta deixar a nota sobre o busto de Ferreira Borges — o eminente comerciante foi um agente do progresso na cidade, e também o foi aqui: o seu busto foi a primeira peça escultórica a ser instalada no Cemitério da Lapa.
Perto do seu busto, é possível encontrar a primeira escultura encomendada de longe: um anjo em terracota, que fez um longo caminho de Paris até esta colina portuense.
© Rui Meireles
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