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Novembro 2025
Quem passa pelo número 716 da Rua de Costa Cabral não imagina que ali, por trás da fachada discreta daquele prédio de habitação burguês, existe um tesouro à espera de ser descoberto: trata-se da incrível coleção de arte de Fernando de Castro. E não é ao acaso que usamos o adjetivo “incrível” — depois de lá entrarmos, ocorre-nos citar a escritora Natália Correia: “creio no incrível”.

Paredes das escadas que dão acesso ao primeiro andar © Renato Cruz Santos
Poeta, pintor, caricaturista e, sobretudo, colecionador, Fernando de Castro (1888 – 1946) transformou a sua casa numa espécie de museu surreal (sem ser surrealista) onde abundam a talha dourada, peças do estilo barroco, arte sacra, pinturas naturalistas (Silva Porto é um dos vários autores que coleciona) e peças das Caldas da Rainha. Tudo à mistura. Há um certo gosto teatral e um traço autoral em Fernando de Castro, que parece ter levado a cabo ali um trabalho de cenografia. É como se tivesse transformado a sua casa numa instalação artística, concebida com ostentação e delírio criativo.
“Esta é uma casa-museu sui generis, montada ao gosto do seu colecionador”, começa por dizer-nos a nossa guia. “Ele colecionava tudo o que lhe agradava, quer fosse arte ou não.”
A visita tem início na antiga sala de estar e de leitura, a “Sala Minhota”, assim denominada por se constatar, nas peças dispostas, uma forte presença desta região através de elementos como os Corações de Viana. Logo ali percebemos que Fernando de Castro não era apenas colecionador; era, também, inventor, já que muitas das peças foram mandadas construir por si — e terá contado com o trabalho de habilidosos marceneiros. Uma estante de livros inspirada numa canga de bois ou uma moldura com a fotografia dos seus pais que é, afinal, a cabeceira de uma cama são apenas dois exemplos, entre muitos, do seu espírito inventivo.
Praticamente, toda a casa é revestida com talha dourada, ao estilo barroco. Este material é proveniente de igrejas e conventos que foram extintos, em 1911, durante a Primeira República, através da Lei da Separação do Estado das Igrejas, e que Fernando fez questão de recuperar.
A sala de jantar, onde prolifera a arte sacra, reproduz o interior de uma capela e está separada do resto da casa por uma cancela trabalhada que "é uma cópia fidedigna de uma existente na Igreja de São Francisco”. “Viu, gostou, copiou e mandou construir”, afirma Anabela Ribeirinha, assistente técnica do Museu Nacional Soares dos Reis. A nossa guia refere que “uma característica das casas-museus é haver sempre uma mesa posta na sala de jantar”, mas que isso não acontece ali porque Maria da Luz, irmã de Fernando, levou consigo os objetos que “evidenciavam a vivência familiar, que mostravam que foi uma casa de habitação”.

© Renato Cruz Santos

Le Malade Imaginaire, de Giuseppe Signorini © Renato Cruz Santos
Subimos para o primeiro andar e deparamo-nos com a “Sala Dourada”, uma divisão mais ampla e luminosa, onde a talha é mais vibrante. Trata-se de uma espécie de sala de baile, “inspirada no Palácio de Versalhes e no Palácio de Queluz”, e que se distingue das restantes divisões pela quantidade de espelhos que a reveste e também pela inexistência de imagens religiosas. Destaque para o quadro Le Malade Imaginaire, de Giuseppe Signorini (finais do século XIX – início do século XX) que transparece um certo humor – uma figural real a avaliar o estado de saúde de uma figura clerical.
As escadas que conduzem ao último piso são uma antecâmara de espanto. A talha dourada, agora mais escura e densa, ganha ainda mais corpo e peso, e parece esmagar os visitantes. Há um púlpito sem acesso e uma coleção de relicários sem relíquias, sendo que o único ponto luminoso é um vitral colorido no tecto.

© Renato Cruz Santos
Num dos compartimentos, o antigo escritório, encontramos dois dos seus escritos expostos numa vitrine — Meteoro e Altar sem Culto. Ao todo, Fernando de Castro terá publicado seis obras, e segundo a coordenadora da casa-museu, Ana Mântua, ainda será possível achar “algumas edições perdidas” em alfarrabistas. Ao lado, na chamada “Sala Azul”, surgem objetos orientais – leques, joias, cerâmica – que contrastam com o imaginário sacro dominante e revelam uma curiosidade sem fronteiras.

© Renato Cruz Santos
A única divisão onde impera a contenção é o antigo quarto da irmã, Maria da Luz. Neste espaço, as paredes brancas estão agora cobertas de caricaturas da autoria de Fernando, pequenas sátiras visuais que revelam o seu humor fino e o gosto por trocadilhos: gostava de associar nomes de pessoas a lugares do país.

Caricaturas da autoria de Fernando de Castro © Renato Cruz Santos

© Renato Cruz Santos
Entre portas que não levam a lado nenhum — ou que prometem passagens que não existem — e imagens religiosas e pinturas que atravessam séculos (do século XVI ao século XX), há outros detalhes que condensam o espírito irreverente e brincalhão de Fernando de Castro, como duas faianças das Caldas da Rainha, escondidas na mesa-de-cabeceira: o penico John Bull e o escarrador em cerâmica da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro.

Escarrador em cerâmica da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro © Renato Cruz Santos
A escassez de fontes documentais tem mantido a personalidade de Fernando envolvida numa aura de mistério, que se traduz - também - no estudo da sua coleção de arte, construída ao longo de três décadas. “Não há muito que se saiba da vida dele”, afirma a guia. “A sua irmã, Maria da Luz, após a sua morte, foi viver para a casa em frente, e levou consigo a documentação que poderia ajudar a descobrir a origem da coleção.”
Sabe-se que o pai, natural da Covilhã, se instalou no Porto, após o seu casamento, e abriu na Rua das Flores “um próspero negócio de vidros, espelhos e papéis pintados", tornando-se representante nacional dos famosos vidros franceses Saint-Gobain. Enviuvou cedo e assumiu, depois, uma relação com Maximina Araújo, a empregada. É deste vínculo amoroso que nasceram Fernando, em 1888, e Maria da Luz, dois anos depois. O pai reconheceu-os como filhos legítimos e, em 1893, mandou construir, na Rua de Costa Cabral, "numa zona nobre da cidade", a casa onde hoje se ergue o museu — um símbolo da ascensão burguesa da época.
Quando o seu pai morre, Fernando herda o imóvel e o negócio. E é a partir de 1918 que se dedica com mais fervor à coleção que o vai imortalizar: uma acumulação obsessiva de peças de arte e de objetos, movida por um gosto pessoal que desafiava convenções estéticas.
Refira-se que, em 1944, Fernando decidiu abrir as portas da casa à cidade e mostrar a sua coleção — um gesto raro, quase teatral, que expunha o seu universo íntimo, tendo convidado também, por essa ocasião, vários jornalistas. Dois anos depois, morre subitamente, sem deixar testamento. Caberia à irmã, Maria da Luz, cumprir a sua vontade de transformar a casa em museu. Em 1952, o edifício é doado pela Câmara Municipal do Porto ao Museu Nacional Soares dos Reis.
Saliente-se, ainda, a biblioteca de Fernando de Castro, composta por mais de três mil volumes, mas que permanece inacessível aos visitantes. Contudo, o seu catálogo está disponível na biblioteca do Museu Nacional Soares dos Reis e, mediante requisição, os livros poderão ser consultados nesse espaço. Ana Mântua adianta, a propósito, que em breve será desenvolvido um trabalho de dissertação de mestrado sobre esta coleção bibliográfica.
Até hoje, Fernando de Castro permanece uma figura enigmática. Da sua vida pessoal pouco se sabe. A sua casa será, talvez, o espelho do seu mundo interior e o seu mais ambicioso poema visual — um lugar onde o sagrado e o profano se encontram, esse tal “altar sem culto”.

Estátua de Fernando de Castro © Gina Macedo
Para visitar a Casa-Museu Fernando de Castro é necessário fazer uma marcação online, através do Museu Nacional Soares dos Reis, sujeita a confirmação de disponibilidade. Em visitas de grupo, o número máximo é de 10 participantes.
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