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Porto/Post/Doc 2025
Entrevistas
As histórias do real regressam à cidade
Porto Post Doc 2025

A 12.ª edição do Porto/Post/Doc: Film & Media Festival arranca já no próximo dia 20. A programação de filmes documentais (e filmes documentais que se cruzam com a ficção e o experimental) deste ano é subordinada ao tema "O tempo de uma viagem", apontando o foco para migrações através de fronteiras, dentro das culturas, e pelas memórias sentimentais. Falámos com o diretor artístico do festival, Dario Oliveira, sobre as viagens em que podemos embarcar até 29 de novembro.

Agenda Porto: Com 138 filmes na programação, esta é a maior edição de sempre do Porto/Post/Doc?

Dario Oliveira: Sinceramente não sei, mas nós todos os anos temos um objetivo que nunca cumprimos: não ter mais de 100 filmes. O que aconteceu este ano foi que acrescentámos uma nova secção, a Competição de Curtas e Médias Metragens, o que fez com que o número total de filmes aumentasse. E também acrescentamos a secção Human Rights in Motion, que é uma competição onde filmes de várias secções competem para o melhor filme sobre direitos humanos. Isto foi-nos proposto pelo Parlamento Europeu, e é algo muito importante de divulgar, especialmente junto do público mais jovem. É um assunto que nos preocupa bastante porque, se calhar, é das poucas coisas em que a humanidade está a retroceder de uma forma muito rápida e muito perigosa. E o cinema documental sempre serviu para isso, para intervenções, para chamar a atenção e pôr as pessoas a falar sobre temas fraturantes ou urgentes.

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© Rui Meireles

AP: Este é o segundo ano de um tríptico temático que começou em 2024 com "A Europa não existe. eu estive lá". De que forma se vai desdobrar este "tempo de uma viagem"?

DO: Estes temas funcionam sempre como o primeiro capítulo da programação: inspira-nos para o resto dos filmes que temos. "O tempo de uma viagem" é o tempo em sala em que as pessoas vêem o filme. Mas ao mesmo tempo é uma viagem no espaço — às vezes até literalmente, como no filme "Fora do Presente". Mas os outros filmes são de várias épocas, e são filmes que retratam aquilo que nos preocupa mais em termos de contemporaneidade, em termos sociais e políticos. O abuso de poder, o exílio, as viagens que são fugas da guerra, fugas da perseguição. Deixamos de parte um capítulo muito interessante da história do cinema, que são os road movies, porque há outras coisas de que é preciso falar, e havia outros filmes que fazia sentido ir buscar na história recente.

AP: Na entrevista que deste à Agenda Porto no ano passado, falavas do poder de futurologia de alguns destes filmes. O que é que os oráculos desta edição nos dizem?

DO: É muito difícil prever, mas há pistas. E são essas pistas que importa trazer para esta semana do festival. Já no ano passado falávamos disto e continuamos a falar este ano, porque nunca é demais. Pondo as coisas de uma forma muito simples: contar histórias é a nossa forma de expressão artística mais antiga, vem do tempo das cavernas. Aquilo que nos assustava enquanto espécie humana, aquilo que guardávamos na memória, continua a ser isso que o cinema dá às pessoas. E é por isso que as pessoas têm uma relação muito fácil e muito prazerosa com o cinema. E é isso que é preciso nós pensarmos cada vez que programamos o festival: trazer para a sala de cinema essas narrativas, as narrativas do real. Os extremismos políticos estão a funcionar bem, para nossa desgraça, precisamente porque têm uma narrativa. A narrativa é facilmente desmontável, mas as pessoas são atraídas também por serem histórias.

AP: E que histórias é que vocês querem trazer?

DO: Nós nem queremos votos, nem somos partido político, nem temos interesses escondidos. Toda a gente tem uma facilidade cada vez maior de ver cinema em casa, mas nós queremos proporcionar às pessoas este contato com a arte, esta partilha na sala escura, os 45 minutos de conversa com o realizador, ouvir-nos uns aos outros na sala. É isso que faz um festival de cinema. Um festival de cinema não vai acontecer no sofá. Todos nós temos memórias de ir ao cinema com os pais. Os pais ainda continuam a ir com os filhos ao cinema, mas vão todos ver os mesmos filmes. O papel dos festivais na cultura das cidades e dos subúrbios é levar as pessoas outra vez à sala, falarmos sobre o outro, trazer a diferença social, a diferença política, a diferença étnica e mostrá-la em contexto de sala de cinema, interpelar as pessoas dessa forma — é esse o nosso trabalho.

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© Rui Meireles

AP: Há uma dimensão de serviço educativo no vosso programa.

DO: Trabalhamos com muitas escolas do Porto e da Zona Metropolitana. E também temos um programa que se chama Docs4Teens que estamos a desenvolver com mais quatro festivais: em Itália, na Ucrânia, na Hungria e em França. E este Docs4Teens é das coisas mais importantes que estamos a fazer neste momento. O Porto/Post/Doc tende a afirmar-se de uma forma cada vez mais sólida junto do público que já tem, por isso agora temos procurado fazer esta "manutenção de públicos", que é darmos cada vez mais atenção aos mais novos, ouvi-los. Os mais novos precisam de muito mais atenção, precisam que os pais os levem ao cinema, precisam que os professores falem e usem os filmes na escola e precisam de ter memórias e de construir essas memórias, de irem ao cinema com os amigos. Eu acho que isto está a falhar, está a falhar muito.

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AP: Até porque o léxico de imagens em movimento que eles têm tende a ser muito diferente do tempo do cinema.

DO: "O tempo das viagens" deles é muito rápido, são viagens muito rápidas. E o nosso cérebro não está preparado para tanta velocidade. Não há cérebro que aguente esta velocidade louca, esquizofrénica, em que de três em três minutos a mensagem é diferente, a narrativa é diferente, o interlocutor é outro. E não fica nada, a nossa memória não aguenta. Portanto, nós estamos a desafiar e estamos a lutar aqui contra um gigante que é esta profusão de imagens sem critério — e o trabalho dos festivais de cinema deve ser este.

AP:  Falavas há pouco nessa ancestralidade das histórias que o cinema conta. Essas primeiras histórias, à volta da fogueira, também eram compostas por oralidade e por conversas, por diálogo. A conversa à volta do cinema também tem um lugar aqui no festival.

DO: Tem, e acontece de várias formas. Repara: tanto o ciclo temático como os focos de autor têm conversas associadas. A Lina Soualem e o Andrei Ujică vão fazer uma masterclass na Escola das Artes, na Universidade Católica. Temos convidados jornalistas, músicos, cineastas para fazerem uma conversa à volta do "tempo de uma viagem". Temos, também, uma série de programas de conversa que são sobre saber ouvir — ouvirmo-nos a nós próprios, e ouvirmos os outros. E esse espaço de partilha acontece todos os dias, porque nós procuramos trazer o máximo de cineastas dos filmes apresentados, para que possam estar aqui disponíveis com a informalidade que este festival já conseguiu.

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AP: Até há um cruzamento nesse território da conversa e da informalidade — há vários momentos de festa e de atuações.

DO: Onde isso é muito notório é na secção Transmission, onde apresentamos documentários sobre música. O Orlando Pantera é uma figura mais ou menos esquecida da música de Cabo Verde e, a propósito de um filme da Catarina Alves Costa que vamos apresentar, temos à noite uma festa dedicada à música popular contemporânea cabo-verdiana. E esta festa é um prolongamento daquilo que é a viagem que vamos fazer até ao universo do Orlando Pantera e dos seus descendentes musicais. Depois, a propósito de um filme sobre a cultura rave na Holanda, em Roterdão — uma cidade que acho que tem muitos pontos de contacto com o Porto — vamos ter o lançamento de um livro e uma festa também com a música eletrónica. E temos, ainda, um filme sobre sessões de escuta de música que têm acontecido há muitos anos em três lugares no Japão, uma forma de fruição musical que também tem crescido no Porto. E esta sessão, que acontece no auditório da Faculdade de Belas Artes, dialoga com uma exposição que está ali patente sobre capas de discos.


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AP: Queres falar-nos um pouco de um programa semi-recente no festival, o Working Class Heroes?

DO: O Working Class Heroes é um projeto que eu tinha desde que desenhei este festival, ainda antes dele existir. Tem que ver com a forma como eu me relaciono com esta cidade — eu nasci na década de 60, junto à estação da Trindade. Embora tenha crescido numa aldeia perto de Vila do Conde, tenho muitas memórias do Porto. Vi o Porto mudar muitas vezes e essas histórias que eu vi, que eu ouvi, que eu li não estão no cinema. Baseado neste buraco negro, a ideia foi lançar algo que falasse dos não-heróis, dos heróis invisíveis, singulares ou plurais da cidade. Todos os anos, lançamos o convite a três cineastas para fazerem aqui uma residência artística, e encontrarem a sua história. Depois, fazem o pitch da história que encontraram, e há um júri internacional que seleciona um projeto que terá apoio da Filmaporto — Film Commission. Têm dois anos para rodar e editar o filme, que depois estreia no festival.

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© Rui Meireles

AP: Portanto, este ano estreia o filme vencedor do festival de 2023.

DO: Exacto, o filme que vamos apresentar este ano, "Cabo do Mundo" de Tomás Baltazar, em estreia mundial,  é uma história pessoal. Conta uma memória pessoal dele, mas é um filme muito poético, que acaba por ser uma ilustração cabal do que pretendemos com este programa. Espero que ao fim de dez anos tenhamos dez histórias, porque as histórias que já estão feitas são incríveis. Por exemplo, o do ano passado é um filme que já está em fase de pós-produção, e é muito curioso porque o protagonista não é português, é um imigrante que entrega comida na cidade, na sua moto. Porque os Working Class Heroes do século XXI já não são os operários fabris, porque já quase não os há. E é muito curioso porque essa realidade chegou-nos naturalmente, sem termos feito nada para a procurar.

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AP: Por fim, e embora já tenhas aqui falado de diversos filmes, queres deixar três recomendações em particular para alguém que nunca tenha ido ao Porto/Post/Doc?

DO: Um dos filmes que recomendo é a sessão de abertura: chama-se "Romaria", e é uma história pessoal da Carla Simone. Conta uma busca pessoal que ela fez, através do diário da sua mãe, para procurar as suas raízes nos anos 80, em Vigo. Este filme é um documentário ficcional, ou uma ficção documental, que mostra uma realidade cultural e social da pequena burguesia galega — que eu acho que se aproxima imenso daquilo que é a realidade da cidade de Porto. É uma história maravilhosa que, pelo que sei, quase conquistava um prémio em Cannes.

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Depois, há um filme que se chama "Short Summer", entra na competição, da jovem cineasta Nastia Korkia. Também fala da família, é um filme que se passa na Rússia, num ambiente completamente rural, em que uma criança vê a guerra ao fundo, através das notícias na rádio e através dos comboios que passam com carregamentos militares. E contrasta com a história bucólica de verão de uma criança com os seus amigos e com a avó, é quase um diário filmado.

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Recomendaria, também, o filme de encerramento, que é o último filme do Jim Jarmusch, um cineasta que me acompanha desde há muito tempo, e que encontrei a primeira vez na Figueira da Foz quando veio mostrar a sua primeira longa-metragem. Intitula-se "Pai Mãe Irmã Irmão", é uma ficção e é a história de uma família,  inspirada em tantas outras histórias que ele conseguiu juntar.

É uma forma simbólica de fechar o festival com esta vontade expressa dos cineastas todos que nós aqui vamos trazer ao Porto — esta ideia de chegada a casa, do lar, de como é que hoje em dia é possível encontrar alguma harmonia nesta esquizofrenia de velocidade desenfreada em que somos todos envolvidos.

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