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Dizem-nos os dicionários da língua portuguesa que a palavra “natal” é relativa a “nascimento”, ao local em que algo ou alguém nasceu ou ainda à festa que celebra o nascimento de Cristo. Deixando os conceitos teóricos para trás, Natal (assim mesmo, com letra maiúscula, porque a evolução da palavra fez com que ascendesse a nome próprio) poderá também ser sinónimo de tradições, de cheiros, de rotinas, de sabores ou de cores. Para os protagonistas da história de hoje, o Natal, que começa ainda no tempo da “manga curta”, vem acompanhado de música, de (muitos) ensaios e de concertos.
O Ensemble Vocal Pro Musica (EVPM), com 33 anos de história, tem no Natal um dos momentos altos da temporada. Dirigido desde a sua fundação pelo maestro José Manuel Pinheiro, é composto por cerca de 100 elementos que duas vezes por semana se juntam para ensaiar. Em dia de jogo da Seleção no Dragão, os trabalhos prosseguem com a atenção necessária para preparar os quatro concertos que “estão à porta”.
Sexta-feira à noite poderia significar saídas com amigos ou serões em família, mas para o EVPM é dia de ensaio. O foco do de hoje é o concerto que vai acontecer a 13 de dezembro, na igreja de São João Novo, às 22h00, a convite do Centro Social e Paroquial de São Nicolau.
© Inês Aleixo
Este concerto está integrado num Presépio Vivo, que retrata o percurso dos Reis Magos a caminho de Belém. Atrás das figuras humanas, que representam Maria, José, Jesus e os Reis Magos, seguem os elementos da comunidade do Centro Histórico do Porto, vestidos de pastores, elaborando um cortejo com várias dezenas de participantes. Este trajeto culmina com um momento simbólico de entrega dos presentes ao Menino Jesus pelos Reis Magos e, na edição deste ano, será o EVPM a fechar a iniciativa, com um concerto oferecido à cidade.
© Inês Aleixo
“Natal sem música é como um jardim sem flores”
Num grupo grande como o EVPM, “é muito difícil escolher um reportório que agrade a todos” e, quando não se pode preparar um coral sinfónico, “prepara-se um reportório mais diversificado, que não deixa de ser sério, mas que chega a mais público”, explica o maestro. Serão assim os concertos de Natal deste ano.
A experiência de José Manuel mostra que este tipo de concerto é sempre bastante concorrido, “o que quer dizer que as pessoas gostam”. E apesar de em Portugal não existir uma tradição tão forte como em Inglaterra, em que não há Natal sem Christmas Carols, o EVPM tem desenvolvido o seu trabalho tentando contribuir para que a música coral no Natal seja uma realidade.
Para o maestro, “Natal sem música é como um jardim sem flores” e, olhando ao público fiel que já têm nestes concertos, acredita que “este tipo de música tem, efetivamente, um impacto nas pessoas”.
“Nós juntamos pessoas pela música”
Tomás Franco é coralista e o presidente da Associação Ensemble Vocal Pro Musica. O jovem acredita que a mistura de temas de Natal que estão a preparar acaba por ter uma “maior recetividade no público”. O grupo está a trabalhar pequenas peças de todo o mundo, desde o cancioneiro de Natal português até aos temas da América Latina, passando pelos clássicos ingleses da época. “Juntamos tudo e fazemos um concerto”, diz-nos Tomás, como se nos lesse uma receita culinária.
Enquanto presidente desta associação, confessa que “os coralistas se motivam mais quando se prepara uma grande obra, musicalmente mais desafiante”, mas tem a certeza de que “é nestes concertos, com peças mais curtas, que as pessoas se mostram mais unidas e mais disponíveis, não só para fazer os concertos, musicalmente falando, mas para os enriquecer, com decorações do espaço ou ofertas para o público”, sempre com o objetivo de tornar aquele momento especial para quem assiste. No EVPM, “nós juntamos pessoas pela música”, conclui.
© Inês Aleixo
© Inês Aleixo
Joana Costa começa a preparar o seu Natal em setembro e é ao processo de construção que dá mais importância, porque chegando ao dia 25 é como o chocapic, “puf, já foi!”, diz-nos, com graça. Como integra vários projetos musicais, esta é uma época de muito desgaste vocal, mas é também “mais quentinha, com reportórios mais leves, mais envolventes e com mais carinho do público”. O calendário de Joana no mês de dezembro é preenchido, mas não consegue imaginar um Natal sem a azáfama dos ensaios e concertos da época.
Pedro Valle está no EVPM há muitos anos, quase desde o início. E, mesmo depois de tanto tempo, diz-nos que “continua a ser bom fazer concertos de Natal, sobretudo porque se descobrem músicas todos os anos”. Conta-nos que o que os torna diferentes e especiais é algo que estará relacionado, sobretudo, com o público.
O compositor inglês John Rutter justifica o porquê de compor tanta música de Natal com o facto de haver público que a ouça. E Pedro concorda, porque “é bom quando o público vem, adere e canta também. Para nós, coralistas, ver essa entrega do público é muito gratificante”, remata. Numa altura em que as pessoas estão mais predispostas a ouvir e cantar, “temos de aproveitar essa energia que o público nos dá”, conclui.
Na sede do Orfeão Universitário do Porto (OUP), criado em 1912, encontramos um coro muito jovem. “Acolher” e “integrar” estarão seguramente no dicionário deste grupo: a forma como nos recebem no espaço que é deles só pode ser disso significado.
O coro, atualmente dirigido pelo maestro António Sérgio Ferreira, é composto por cerca de 45 elementos em idade universitária. Fazem dois ensaios por semana e neste Natal subirão a palco seis vezes. O mais importante (o Concerto de Natal da Universidade do Porto) será a 17 de dezembro, às 19h00, na Igreja dos Clérigos.
O trabalho para os concertos de Natal começa em setembro, “no pico do verão, e cantar músicas de Natal nessa altura é muito fora do contexto”, confessa António Sérgio.
© Inês Aleixo
Para o maestro, esta altura do ano tem um fator que a distingue das restantes: a disponibilidade e a vontade do público em ouvir muita música coral. “O que se nota é que o entusiasmo do público passa para o coro. A preparação deste tipo de concertos não é diferente em relação a outros, mas a experiência que os coralistas têm em palco, sim”, conclui.
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Um legado de gerações
Pedro Martins tem 19 anos e é estudante de Engenharia Eletrotécnica. Ana Coelho tem 20 anos e estuda Design de Comunicação. Este é para ambos o segundo ano no coro. Sem grande experiência musical, a entrada no Coro do OUP dá-se pela curiosidade espoletada pelas memórias dos pais.
É que estes dois jovens têm o OUP no sangue: a mãe de Pedro e os pais de Ana fizeram parte deste mesmo coro enquanto estudantes da Universidade do Porto. Cresceram a ouvir as histórias do Orfeão e não haveria, dizem, outra hipótese se não a de integrar este grupo, “pelo menos para experimentar”.
Pedro explica-nos o fascínio de fazer parte de um coro, sobretudo pelo processo de criação da música, “em que, naipe a naipe, se constroem as melodias”. Ana acrescenta que “têm muitos concertos nesta altura”, mas a partilha associada ao espírito de Natal ajuda a que sintam “mais ligação entre o coro e público” enquanto cantam.
Salomé tem 21 anos e este é o seu segundo ano OUP. Veio “empurrada” por uma amiga e não se arrepende. Para a jovem, esta é uma comunidade diferente, já que no OUP têm a possibilidade de “aprender com os sucessos e com os erros uns dos outros, enquanto experimentam a arte de forma muito pessoal”.
Inês, 21 anos, deixou a música para se dedicar à engenharia eletrotécnica. Está no OUP há quatro anos e também ela veio pelas mãos de uma amiga. Apesar de não querer fazer da música a sua vida, não queria que ela deixasse de fazer parte de si. “Vir para o OUP foi a melhor decisão que tomei e não poderia estar mais grata pelas experiências que me tem proporcionado”, confessa.
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E sobre os concertos de Natal?
Há canções obrigatórias, mas Inês não se cansa de as cantar e “o público está muito recetivo a este tipo de eventos e canta connosco… é muito mágico”. Salomé recorda entre gargalhadas o início dos ensaios, em setembro, ainda a pensar na praia, e já a trautear “Feliz Navidad”. E as famílias são envolvidas mesmo que não queiram: se os pais de Salomé aprendem as músicas enquanto a filha as vai cantando pela casa, já os de Inês não perdem um concerto. Conseguimos adivinhar onde estarão no dia 17 às 19h00?
© Inês Aleixo
Mais perto do dia de Natal, é a vez de o Coro da Sé Catedral do Porto “cantar o Natal”. A 21 de dezembro, na casa que lhe dá nome, serão interpretadas obras de Zelenka e Homilius. O concerto tem hora marcada para 21h30 e a entrada é livre.
Formado em 1971, tem a direção artística a cargo de Tiago Ferreira desde 2015. Com cerca de 80 elementos, faz dois ensaios por semana além dos ensaios de naipe focados na técnica vocal.
Assistimos a um desses ensaios e, logo à chegada, ainda no Terreiro da Sé, ouvem-se as vozes do coro. Neste dia, estão mais de 50 pessoas na sala (entre coralistas, maestro e uma visita especial: António Ferreira dos Santos, o fundador do coro).
A obra que preparam é imponente e séria, mas nem por isso deixa de haver sorrisos. Nesta sala, paira uma tranquilidade de quem sabe o que está a fazer. O desafio é real e o foco no trabalho, acompanhado de um rigor cirúrgico, é o ingrediente necessário para que a 21 de dezembro tudo esteja pronto.
O Coro da Sé nasceu da necessidade de a cidade “ter música sacra de qualidade”, explica-nos Miguel Simões, presidente do coro. Depois de estudar na Alemanha, Ferreira dos Santos regressa a Portugal com esse objetivo. Aborda Dom António Ferreira Gomes, bispo do Porto à época, no sentido de lhe explicar o que seria necessário para concretizar essa missão: fazer um grande órgão na Catedral, ter um grande coro residente e ter pessoas que componham música. E foi assim que, em 1971, o Coro da Sé Catedral do Porto começou a sua história.
O concerto de Natal é uma tradição de há muitos anos neste coro e na cidade. O sábado que antecede o dia de Natal é, por regra, o dia destinado a este evento, também ele recheado de tradições: seja qual for o programa, o concerto termina com o tradicional Adeste Fidelis, com a participação do público.
© Inês Aleixo
No Natal, “a música tende a ser mais leve, com modos maiores, com poucas dissonâncias”, explica Miguel. E esta “coisa dos coros” tem as suas curiosidades: “os portugueses são pessoas envergonhadas para cantar, mas no Natal todos cantam, mesmo os mais tímidos”, conclui. É possível que seja também essa a magia do Natal?
© Inês Aleixo
João Paulo tem 21 anos e está no coro há cerca de um ano. É organista na paróquia onde reside e estudou órgão com o maestro Tiago Ferreira, que o desafiou várias vezes a ingressar no grupo. Depois de assistir a dois concertos na Páscoa, não conseguiu recusar o convite e juntou-se ao coro. O jovem confessa que o trabalho é exigente e o reportório difícil, mas garante que “vale a pena”.
Maria Urânia tem 79 anos, está no coro há 35, e é dos elementos mais antigos. Na Paróquia de São Martinho de Cedofeita descobriu o gosto pela música litúrgica, mas foi quando começou a assistir aos concertos do Coro da Sé que percebeu que precisava de outros desafios. Juntou-se ao grupo e desde então nunca mais parou. “Este é um grupo muito unido e é onde me sinto bem”, remata.
Concerto de Natal com estreias nacionais
O maestro Tiago Ferreira explica-nos que este ano o objetivo foi fazer algo diferente. Os dois compositores escolhidos são contemporâneos de Bach e, por isso, “absorveram algumas das características do seu trabalho”, conclui. Pouco conhecidos e trabalhados no universo da música coral, “tudo leva a crer que estas duas obras nunca terão sido interpretadas em Portugal”.
Num concerto oferecido pelo coro à cidade, a tradição é de “igreja cheia”. Tiago recorda o concerto de 2023, que aconteceu numa noite muito fria, de tal forma que os músicos não puderam passar pelo exterior, pelo risco de os instrumentos estalarem. Mas apesar desse frio, “a Catedral estava cheia e havia pessoas sentadas no chão, na pedra”.
Para o jovem maestro, que acredita que a música consegue transformar as pessoas, “é um prazer dirigir este coro”. “Há ensaios mais fáceis do que outros, mas normalmente as pessoas saem daqui mais leves”, conclui.
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Estes são apenas três dentre os muitos coros que ensaiam na cidade do Porto. São amadores e dedicam várias horas por semana a ensaios e concertos. O Natal é, para os três grupos, uma época de muito trabalho, mas ninguém se cansa. Seja qual for a idade, as pessoas que integram estes coros fazem-no pelo gosto que têm pela música, mas, sobretudo, porque cantar, em coro, faz bem à saúde. Podíamos voltar às definições e aos conceitos teóricos, mas deixemos isso para quem sabe. Na prática, aquilo que vemos é que há uma grande harmonia entre todos os coralistas e um enorme respeito pelo trabalho que é realizado. Os maestros comandam “as tropas”, os coralistas seguem as suas indicações e, no fim, temos um resultado que chega a ser mágico… como o Natal.
por Catarina Madruga
© Inês Aleixo
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