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Outubro 2025
Olhar para a biografia de Ganavya Doraiswamy ajuda a decifrar a sua música. Nasceu em Nova Iorque, passou pela Flórida e, aos sete anos, mudou-se com a família para Shenkottai, pequena localidade na Índia. Aos oito, rumaram a Chennai, capital do estado de Tamil Nadu, para que ela se formasse em música carnática, a vertente da clássica indiana com tradição no sul do país. Foi influenciada pelos elementos devocionais do estilo e também pelo harikathā, modo de narrar histórias que combina poesia, música, teatro, dança e filosofia. No seu primeiro álbum, Aikyam: Onnu (2018), Ganavya misturou standards de jazz (com oito décadas) e abhangs (estruturas poéticas com oito séculos), cantadas em inglês e em tâmil (língua com dois milénios). Essa fusão entre épocas, culturas e latitudes, essa mistura que mais do que quebrar o tempo e o espaço os estende e entrelaça, é rasgo fundamental das suas canções — e também da sua vida.
Ganavya © Leiter
Foi imersos no universo da multi-instrumentista que a vimos irromper na videochamada, de camisola de andar-por-casa, e lamentar o atraso: “podia inventar uma desculpa, mas a verdade é que estava a cortar o cabelo ao meu pai.” A leveza, porém, é apartada logo após uma primeira pergunta sobre a infância. Ganavya inicia uma longa divagação sobre o sistema de castas que hierarquiza a sociedade indiana, que ela considera, ainda hoje, “muito vivo” e “a principal fonte de injustiça no país”.
“A família em que nasces determina em grande parte a tua vida”, diz, antes de o relacionar com a sua área. “A chamada música clássica indiana está muito ligada à casta, tenhamos ou não estômago para o admitir”. Explica-nos que é “frequentemente ensinada como um meio de aproximação a Deus”, criando “uma falsa equivalência entre ser bom músico e estar próximo da divindade”. O que, por ter crescido numa família privilegiada, cedo lhe gerou dúvidas sobre o futuro: “queria pertencer aos músicos e não ao clero, queria ser música sem ter de fingir que tinha qualidades sobre-humanas”.
Algo mais a incomodava. Como “a música clássica indiana é uma tradição oral”, os alunos tornam-se “inteiramente dependentes do seu professor” e abre-se a porta aos abusos. “Muitos bons músicos são apenas pessoas egocêntricas, pelo que os seus piores impulsos humanos se manifestam na população mais vulnerável, que neste caso costumam ser as crianças”. Garante-nos, sem hesitar que a pederestia no setor é um “facto comprovado”. “Sobem ao palco, cantam sobre Deus, e cá fora são abusadores”. Por sorte, ela escapou: “testemunhei esse inferno sem enfrentar a pior parte, pois era vista como uma criança americana, achavam que podia falar”. O resultado foi “uma dissonância cognitiva imediata”, que a levou a afastar-se da música por um tempo.
A pequena Ganavya “queria cantar, porque é um gesto de alegria”, mas cresceu “num mundo em que cantar estava destinado a ser um veículo de violência”, razão pela qual tem “sempre dificuldades com as entrevistas”, “que fazem esses medos reaparecer”.
Ganavya © Leiter
De volta à infância, Ganavya destaca a obsessão indiana com as crianças-prodígio. “Somos demasiados”, diz, “o que leva a uma grande competição”. “Comecei a formar-me muito nova, muito antes de qualquer miúdo ter a capacidade de dizer ‘quero ser músico’”, mas admite que a versão dos pais será outra – dirão que foi “uma criança com uma voz divina”, que começou a tocar vina (instrumento indiano de sete cordas) aos três anos. Alerta, porém, para um lado “mais sombrio”, que nos leva de volta às castas: “a música clássica indiana é obcecada por linhagens, acredita-se que a música está no sangue”. Ela não o defende, mas também não rejeita: “para ser honesta, tudo o que ouvirem sobre a Índia é verdade e tudo é mentira”.
A família fê-la sentir que podia chegar a profissional. “Num mundo que está hiper-focado na produtividade e em que tudo se define pelo sucesso financeiro, o facto de não ter tido que ouvir ‘não queremos que sejas música’ acabou por ser muito importante”. E os laços melómanos não vieram apenas dos progenitores.
A avó, feliz até ao fim
A avó paterna de Ganavya aprendeu de menina a tocar jalatarangam, instrumento de percussão melódica indiano composto por taças de porcelana que se enchem com água. “Pode-se dizer que é hoje um instrumento morto; as pessoas querem algo que se possa levar numa mochila”, explica, antes de nova reflexão: “o que é frágil e requer carinho… morre rapidamente”. Conta que aos 13 anos a avó se casou “e parou de tocar”. Teve dez filhos, mas acabou por perder o primeiro: “o menino tinha pólio e não conseguiam comprar-lhe a medicação”, pelo que faleceu “lentamente nos braços dela”. “A Humanidade falhou à família”, diz-nos, o que terá feito a avó “perder um pouco a cabeça”. Foi depois da tragédia que “voltou a pegar no jalatarangam”, atuando depois em muitos palcos.
Ganavya liga a história à sua própria vida. “Enquanto artista, estou rodeada de extremos: no mesmo dia posso viajar num jato privado e mais tarde estar sentada no chão do aeroporto”. Revela que a única coisa que hoje a satisfaz “é um bom concerto” e assegura que tudo na sua vida gira em torno a isso, “como se fosse uma peça de teatro”, algo que a avó também viveu. “Nada a afetava, morreu como uma pessoa gentil e bondosa, ainda curiosa com a música”. Ao “ser catapultada para este mundo”, a neta diz ver à sua volta “músicos que que ganham milhões e são profundamente infelizes”, enquanto tem “amigos que não conseguem arranjar concertos” e que por isso “também são infelizes”. Acha que a avó “morreu feliz” e está “a tentar entender porquê”. Dedicou-lhe uma ópera – The Nine Jewelled Deer –, criada com a compositora israelita Sivan Eldar, que estreou em maio. “Acho que a minha avó não teria gostado”, admite, “talvez achasse disparatado e estranho”.
Ganavya © Ricky Weaver
Ganavya © Fabrice Bourgelle
Ganavya © Agenda Porto
O álbum foi tão bem recebido que, ainda no mesmo ano, publicou Daughter of a Temple, nascido de um encontro-ritual por ela organizado em Houston, com mais de 30 artistas multidisciplinares. Novamente um sucesso, embalou-a para um quarto trabalho seis meses depois, Nilam, descrito como “uma reflexão sobre os ritmos da vida e a importância de encontrar um lugar onde assentar”. As suas canções evocam as peregrinações que a cantora fez com a família em Tamil Nadu, rotas em que tradicionalmente se cantam os tais abhangs (significa algo “sem fim”), para animar os caminhantes. Esta poemas espirituais, que remontam já ao século XIII, têm uma estrutura que “permite encadear um número infinito de versos”, como nos exemplifica cantando a capela. “A previsibilidade da forma permite que mais pessoas a leiam intuitivamente, e então podemos cantar juntos durante horas enquanto caminhamos em direção ao templo”.
“São canções escritas no chão”, conta, criadas “especificamente para combater o sistema de castas”, poemas “para serem cantados por todos”, em especial pelos peregrinos que rumam a templos onde todos podem entrar (há outros que são segregados por casta ou religião). Ganavya explica que este tipo de “poesia irradiou nas formas hindus de oração durante um ciclo anterior de perseguição”, e faz a ponte com os tempos atuais. Hoje “os perseguidos estão-se a tornar perseguidores, a violência está a acontecer e parte do problema é porque as pessoas têm a certeza de que há uma ameaça”. O assunto fá-la endurecer o tom: “os hindus, de repente, têm a certeza de que precisam de se defender dos seus próprios irmãos, porque existe uma linha falsa criada a separar a Índia e o Paquistão, uma linha tão recente que tenho instrumentos em casa que são mais antigos” [a fronteira foi definida em 1947, com a criação dos dois Estados, que desde então disputam o território de Caxemira, conflito reaceso em maio deste ano com um atentado e envio de mísseis]. “Horrorizada” e “perdida”, a artista não quer “responder às certezas com… mais certezas”. “Não quero dizer que tenho a resposta certa, mas posso cantar canções de há muitos séculos que não se alinham com essa lógica”.
Ganavya © Leiter
A experimentação entre a música carnática, o jazz, o indie e a eletrónica, ambientes etéreos e passagens que a muitos soam como preces, são então traços do som de Ganavya, sempre com a improvisação de fundo. “Não é algo de que eu necessariamente goste, é antes aquilo com que a minha inteligência consegue lidar”. Uma necessidade que se traduz nas relações em palco ou no estúdio. “Ainda não encontrei um modo de me sentir à vontade para dizer a outro músico que faça isto ou aquilo; a ideia de que a minha banda tem de seguir as minhas instruções e aprender a fazer música é violenta”. Acha mesmo que “a improvisação é o que nos permite criar música em conjunto sem medo”, cada um com as suas “orações independentes”.
Na vida parece seguir padrão semelhante. Uma mensagem enviada pelo marido, o alemão Felix Grimm, que é também seu manager, interrompe-nos a conversa: “está-me a dizer que a minha próxima entrevista começa dentro de um minuto”. Tempo suficiente para uma revelação sobre o casal: “estamos a pensar mudar-nos para Portugal dentro de um ano ou dois”. O local, não revelado, fica a duas horas de Lisboa e visitam-no frequentemente, pois ele tem aí relações. Ela virá ao Porto pela primeira vez a 15 de outubro, para atuar na Casa da Música, uma estreia em palcos nacionais.
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