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A dimensão existencial do fotógrafo Virgílio Ferreira passará sempre pela vontade de se (re)conectar e descobrir o Porto em constante transformação. Afinal, esta é a sua cidade natal que se entranha e deixa marca. Por mais viagens que faça, por mais locais que pise e gentes com quem se cruze, há sempre um sentido no regresso. Aquele local-espaço de abrigo onde fermentam ideias, se criam pontes colaborativas e se repensa o mundo de dentro para fora.
Uma viagem a partir da cidade, para o país e para o mundo. Viagem com ida que também tem um retorno… ao Porto, que serve de base da experimentação, da mudança regenerativa, do abrigo de residências, de reflexões e de exposições públicas, comunitárias e sustentáveis. Foi nesse fluxo constante de viagens, de circulação de ideias e experiências que marcamos encontro com Virgílio Ferreira, diretor da Bienal Fotografia do Porto. A próxima edição vai acontecer em Maio de 2025. O local escolhido para a nossa conversa foi o espaço Ci.CLO, na Rua de Santo Ildefonso, uma das estruturas independentes de pesquisa e criação do fotógrafo, que celebra agora 10 anos de existência. Podiam ser outros (os espaços que transformam a cidade), mas este tem o peso da génese. Aqui é o laboratório de criação e ponto de confluência da Bienal, no rés-do-chão do número 354.
© Andreia Merca
Agenda Porto: Considera que a sua prática artística foi desafiada pelas múltiplas viagens que fez? Terá sido um período chave no que viria a ser a antecâmara para o desenvolvimento do ecossistema criativo e transdisciplinar que está no ADN da Bienal Fotografia do Porto?
Virgílio Ferreira: Foi uma das alavancas para expandir-me como artista e sair de um projeto individual para passar para um projeto de colaboração, coletivo. E, nesse caminho, não posso dissociar as experiências, a partilha inerente às residências artísticas em que participei fora do país: na Europa — em Paris, Amesterdão, Brighton, e também na Ásia e América do Norte. Foram viagens que me permitiram o contacto com outros contextos, outras realidades e culturas. Tive a oportunidade de circular por várias paragens, fui convidado a participar em exposições, em residências em vários contextos, vivi experiências radicais como na Sibéria — foi alucinante, pensava que não voltava [risos]… Esse fluxo de viagens e vivências abriu-me, de facto, novas portas.
"Vivi experiências radicais como na Sibéria — foi alucinante, pensava que não voltava..."
© Andreia Merca
AP: E mudaram-no enquanto fotógrafo?
VF: Sim, sem dúvida. Essas experiências acrescentaram-me muito enquanto fotógrafo. Acabou por ser um crescimento pessoal e profissional, algo que procurava!
AP: Essa inconstância na busca é algo intrínseco a um fotógrafo. As viagens e o contacto constante com outras práticas artísticas e com outros artistas orientaram-no nessa busca?
VF: Nestas viagens, a passagem pela Ásia teve um impacto muito significativo.
AP: Em que aspeto?
VF: No aspeto da diferença. Nas diferenças culturais e na forma como se trabalha com os próprios parceiros e em contexto de residência. O choque cultural foi mais expressivo. Não se fica indiferente a um país como a China, com esta diversidade e com uma densidade populacional gigante de onde saíram os peregrinos do quotidiano com este foco na metrópole, nessas movimentações, nessa desorientação. Foi mesmo muito marcante. Na China, cruzei-me com fotógrafos com um percurso muito consolidado; aliás, estava muito próximo da Factory, em Jingdezhen, uma área industrial repleta de estúdios e galerias. Contactei com vários artistas visuais e alguns fotógrafos, mas também artistas emergentes que se cruzavam nesses momentos de partilha.
AP: Onde entra aqui aquele chavão… o trabalho de fotógrafo é solitário?
VF: Acaba por ser solitário, sim. Houve esses momentos de partilha, mas depois nessas deambulações mais nómadas, o trabalho do fotógrafo acaba por ser mais solitário. Têm de existir momentos de análise, de introspeção.
AP: E nessas viagens sentiu o apelo para o registo da imagem em movimento?
VF: Sim, sem dúvida. Na China cheguei a fazer vários filmes. Essa vontade de cruzar a fotografia com a imagem em movimento é algo que está muito presente… às vezes mais envergonhado, mas está muito presente. Em quase todos os projetos acabo por filmar.
AP: E nestas vivências onde entra a Bienal Fotografia do Porto?
VF: Surge a partir do último projeto que desenvolvi, Being and Becoming (Ser e Devir), sobre a emigração (de Portugal para o Norte da Europa) com o qual recebi uma bolsa e que envolveu várias dinâmicas e parceiros europeus. Decidi fazer uma proposta de itinerância a nível nacional dessa exposição no âmbito da qual também organizava residências para artistas emergentes, onde havia uma partilha de experiências para desenvolver projetos específicos para aquele contexto, naquele lugar e com aquelas comunidades. Isso foi o início da Ci.CLO. Depois, criámos um programa de dois anos [um Laboratório de Criação] para artistas transdisciplinares e especialistas de áreas completamente distintas da fotografia. Este trabalho resultou numa exposição nacional, chegámos a apresentar no Fotofestiwal Lódz, na Polónia, na School of Visual Arts, em Nova Iorque… houve uma visibilidade muito grande desse trabalho. E essa dinâmica é aquilo que define muito a Bienal – uma interligação cíclica entre a conceção, criação, investigação, apresentação, mediação e difusão nacional e internacional do trabalho que desenvolvemos. Sentimos, também, que havia aqui um espaço para crescer e para criar uma plataforma que pudesse envolver mais artistas, mais parceiros e dar uma nova visibilidade a todo o trabalho que estava a ser feito. A Bienal surge neste âmbito.
"Essa vontade de cruzar a fotografia com a imagem em movimento é algo que está muito presente… às vezes mais envergonhado, mas está muito presente. Em quase todos os projetos acabo por filmar."
AP: E que desafios tem encontrado na organização da Bienal Fotografia do Porto com esta validação e importância na cidade?
VF: Queremos continuar a nutrir as parcerias que temos e as novas que vão surgindo. Mas não o vejo como desafios, antes uma motivação — até porque os desafios estão sempre inerentes. Colocamos sempre a questão: “Será que conseguiremos captar mais financiamento para fazer crescer o projeto e dar-lhe ainda mais visibilidade e robustez, que tanto merece e necessita?” Tem mais que ver com estas questões de gestão e captação financeira.
AP: A última edição da Bienal Fotografia do Porto recebeu 16 exposições, mais de 100 atividades em 45 dias. Considera que está num processo de consolidação?
VF: Sim, sem dúvida. Esta terceira edição mostrou isso mesmo. Conseguimos agregar 70 parceiros. Do ponto de vista internacional está profundamente consolidada. O balanço foi muito positivo por aquilo que vivenciamos com os artistas e o público, mas também da parte dos nossos parceiros, que vieram de fora e que levaram daqui do Porto uma memória muito positiva em termos de networking. Sentiram-se parte deste evento e estiveram presentes na cidade. Todos retribuíram com a vontade de continuar a querer trabalhar connosco e expandir estas colaborações. Contámos nesta última edição com parceiros de 27 países desde a Alemanha, França, Espanha, Finlândia, Noruega, Suíça, Líbano, Coreia ou Peru.
© Andreia Merca
AP: Há algum trabalho ou momento que queira destacar?
VF: Destaco o que às vezes é difícil perceber e que está na matriz da Bienal. Existem dois eixos que a sustenta: um diz respeito à parte processual das residências e dos laboratórios; e o outro é o programático, as exposições e atividades de mediação. No ano e meio anterior à Bienal, convidámos artistas, curadores, assim como parceiros para se envolverem nesses processos e desenvolverem trabalhos específicos. É um trabalho de fundo, de lastro, de território e de comunidade. Algo com que nos identificamos e achamos fundamental. Para o público, é um trabalho quase invisível… de fundo, que temos vindo a fazer e de onde vêm a maior parte dos conteúdos apresentados na Bienal. Nesse âmbito, já conseguimos captar parceiros e artistas internacionais que chegam ao Porto e desenvolvem os seus trabalhos, como são exemplo o Instituto Ibero-Americano da Finlândia, o artista de Nova Iorque Uwa Iduozee, que desenvolveu um projeto no bairro do Cerco. Tudo isso deixa muito lastro, não só para o artista, mas também para a comunidade. Este é um exemplo, mas há outros. O projeto ViViFiCAR que abrange territórios de baixa densidade na região do Douro e que envolveu artistas locais e noruegueses… todo este trabalho é o que nos interessa. Continuar a consolidar. E quando há pouco me perguntou sobre os desafios… é, de facto, isto; conseguirmos implementar mais esses laboratórios e, também, fazer perceber não só às instituições, mas também a outros municípios a importância desse trabalho.
AP: E nesse diálogo da prática artística de laboratório e o trabalho que depois é feito junto das comunidades, há algum momento que queira partilhar?
VF: Nas residências em territórios de baixa densidade no Douro, nomeadamente a exposição que esteve patente no Museu do Vinho do Porto… Imagine o que é um artista estar a viver em casa de particulares algures numa aldeia na região demarcada do Douro, receber um artista na sua casa, que não conhece e nem fala a sua língua… da parte do artista, imagine a experiência imersiva numa comunidade que não conhece.
© Andreia Merca
AP: E junto das comunidades da cidade do Porto, com o projeto “Cercar-te”, desenvolvido para a edição do ano passado da Bienal?
VF: Há experiências peculiares: De repente, em pleno bairro do Cerco, na freguesia de Campanhã, receber um artista de Nova Iorque a circular naquela geografia específica o dia todo exigiu dinâmicas específicas com as várias franjas da comunidade.
AP: Mas foi fácil atrair esse nicho da população para algo tão imersivo como é uma residência e uma prática artística partilhada?
VF: Foi, essencialmente, um trabalho de vivência que se desenvolveu ali. Tivemos de entrar dentro da comunidade que, de alguma forma, teve de ser preparada e contextualizada sobre o que pretendíamos desenvolver. É preciso conquistar; de repente, as portas começaram a abrir.
AP: As portas físicas abriram-se e conseguiram transpor as barreiras sociais, culturais e linguísticas?
VF: Sim, totalmente. Aquela residência no bairro do Cerco foi incrível, conseguimos reunir muitos jovens entre os 14 e os 18 anos para trabalhar com este artista. Foi incrível. Vieram depois todos à exposição, amigos e familiares.
AP: Como perspetiva o futuro da Bienal Fotografia do Porto?
VF: Queremos continuar a desenvolver este trabalho de fundo e de proximidade com a cidade e as suas comunidades e territórios, mas também para além desses territórios, a nível nacional e internacional. Fazemos parte da rede europeia de fotografia, a Futures, composta por 18 parceiros europeus (integra museus, centros de fotografia, festivais). Queremos aprofundar esta rede de intercâmbio artístico internacional, desenvolvendo projetos em parcerias e/ou coproduções. Também pretendemos continuar a explorar estas plataformas associadas à Bienal, como a SUSTENTAR, aqui na cidade do Porto, em que colocamos o artista em diálogo com iniciativas que respondem às questões da sustentabilidade no meio urbano; o ViViFiCAR, residências em territórios de baixa densidade sobre esta ideia do viver e ficar num território que nos é muito próximo, o Douro; o CONECTAR, que liga instituições internacionais à Bienal e não só. Tem uma dupla função: acolher e também expor fora. Há agora uma proposta que está a circular para a primeira edição do Festival Internacional de Fotografia de Turim, ao qual propusemos as três exposições do SUSTENTAR, para projetos fotográficos e videográficos; e o EXPANDIR, plataforma dedicada aos artistas emergentes com uma função profissionalizante e que desenvolvemos com várias faculdades e universidades, desde a Universidade Católica, as faculdades de Belas Artes e de Arquitetura do Porto, a Escola Superior de Media Artes e Design (ESMAD), a Faculdade de Belas-Artes de Lisboa ou a Escola Superior Artística do Porto.
AP: De que forma o conceito da sustentabilidade entra na prática fotográfica e no processo criativo associado à fotografia?
VF: É um processo que temos analisado e implementado. Sensibilizamos os próprios artistas e curadores a repensar a sustentabilidade. Temos em mente esse cuidado na produção e no desenvolvimento de propostas com soluções que achamos serem as mais sustentáveis e económicas em termos de recursos. Tivemos uma das maiores exposições em espaço público na estação de metro de São Bento, em que toda aquela dimensão e escala — ao nível da estrutura expositiva — resultou na reutilização de lixo industrial (desperdícios de produção e materiais com defeito), numa parceria com a Artworks. Este é um dos exemplos criativos e de gestão de recursos. Temos, ainda, uma ação associada de reflorestação, a ser desenvolvida nos próximos quatro anos, e que passa pela regeneração de uma ribeira no Alentejo. Infelizmente, no Porto não identificamos, nem conhecemos projetos de regeneração. Aqui está um desafio a ser lançado ao Porto!
AP: No sentido mais lato, com que visões pode a fotografia contribuir para leituras críticas da sociedade, que também podem ser emotivas, conscientes e, por que não, regenerativas destas “urgências ecológicas”? De que forma a fotografia poderá contribuir para esta tomada de consciência e mudança de hábitos?
VF: Existem várias dimensões. A Bienal convoca à fotografia, mas é sempre a fotografia em diálogo com a palavra, com a imagem em movimento, com o vídeo, com os novos media. Há sempre um cruzamento interdisciplinar. A fotografia em diálogo é fundamental. Não é fechá-la numa moldura e acreditar que, por si só, tem um poder de mudar mentalidades. Não acho que isso chegue! Acredito nesta fotografia mais ativista no sentido de criar diálogos e parcerias com artistas, curadores, produtores. É criar contexto para que as coisas aconteçam e que haja trocas. É esse trabalho invisível que falei há pouco. Um artista que trabalha durante dias com as comunidades, ele e as pessoas envolvidas jamais esquecerão estas vivências. Isso deixa marca. Acredito muito nesse trabalho de mediação; é fundamental, como, aliás, são exemplo as atividades públicas que tivemos, desde as visitas guiadas, as oficinas para famílias e crianças, o trabalho com as escolas.
© Andreia Merca
"A Bienal convoca à fotografia, mas é sempre a fotografia em diálogo com a palavra, com a imagem em movimento, com o vídeo, com os novos media. Há sempre um cruzamento interdisciplinar."
AP: E nessa dinâmica com a comunidade educativa, tem existido uma continuidade nesse trabalho colaborativo?
VF: Este ano vamos focar-nos nesse aspeto. Aliás, o trabalho de mediação estará a par desse trabalho de criação e de fundo com as escolas e grupos de jovens.
AP: E a fotografia é, por si só, um dos atos de empatia mais tangíveis, a par da palavra, da poesia, da imagem em movimento, da pintura, da literatura… tem essa exclusividade?
VF: Sim, implicitamente. Impele à provocação, no sentir. Nutre essa empatia de querer saber mais sobre algo. Partir à descoberta. A fotografia tem uma linguagem universal, mesmo perante a diferença, nos códigos culturais. A forma como olho a fotografia será diferente de alguém numa comunidade indígena da América do Sul. Mas existe uma universalidade ou, pelo menos, permite múltiplas leituras. Estimula e cria um diálogo com o nosso próprio imaginário.
© Andreia Merca
AP: E que camadas pessoais de um fotógrafo podem parecer (in)visíveis numa fotografia?
VF: Aqui já estamos a entrar nas questões mais subjetivas. Mas no meu trabalho é impossível não me dissociar dessas camadas pessoais. Obviamente que é impossível todas as pessoas se conectarem, mas já recebi feedback de pessoas que sentem as minhas sensibilidades e subjetividades.
AP: E prefere retratar o realismo ou a incerteza do indeterminado?
VF: Prefiro o indeterminado, o inusitado, o incerto… mas a partir do real, do concreto. O não-linear porque o mundo é assim mesmo: o mundo não é concreto, objetivo e linear. Gostaríamos que fosse, mas não é. A vida ensina-nos isso.
AP: E existe algo que não conseguiria fotografar?
VF: A violência. Situações em que não exista empatia, nem um diálogo prévio. A invasão de espaço do Outro. A intromissão da intimidade de alguém.
AP: Anda sempre com uma máquina fotográfica?
VF: Não. E é raro fotografar com telemóvel.
AP: Mas não sente o apelo do registo?
VF: É curioso; houve uma altura na minha vida que deambulava na Natureza, visitava parques muito próximos, como o Gerês. Passeio por sítios incríveis na Natureza, mas nunca os fotografei. Fi-lo com os olhos… com o meu olhar. Foram registos que ficaram para mim. Tenho esse direito de não o partilhar [risos], é um registo interior.
AP: E por falar em paragens, como sente e vivencia o Porto?
VF: É o meu Porto de abrigo. Nasci, estudei, trabalho no Porto, gosto de sair, de viajar, mas tenho sempre muita vontade de voltar. Numa determinada altura da minha vida questionei se iria para outra cidade. Agora não tenho dúvida alguma. Esta é a minha cidade. É a cidade onde quero viver e onde tenho cada vez mais vontade de trabalhar em contexto local e com este networking internacional. Quero que os projetos comecem aqui. Depois, é projetar para fora e trazer para cá pessoas, entidades, projetos e artistas para conhecerem também a nossa realidade. Essencialmente, projetar o trabalho que estamos a fazer a partir do Porto e que tem sido um grande sucesso. Sinto que há muitas entidades a olhar com respeito pela nossa singularidade, por sermos arrojados e experimentais. Há todo esse lado de teste e protótipo que acontece. Adoro o Porto e esta relação que a cidade tem com o rio e o mar.
AP: Nesses intercâmbios e redes de colaboração, quais são os sítios no Porto que normalmente visita com esses artistas e parceiros?
VF: Confesso que nem sempre há muito tempo [risos]. Mas habitualmente vamos ao Jardim do Palácio de Cristal, à Ribeira, à Sé… todo esse percurso da baixa deixa as pessoas impactadas. No fundo, cruzamo-nos nas zonas da cidade onde temos as nossas exposições e acabamos por fazer este percurso e alguns mais improváveis. Claro que depois seguem por conta própria a explorar a cidade.
AP: E há um Porto secreto que o Virgílio (re)visita?
VF: Antes fazia muito essas viagens pela cidade. Mas depois parei com a pandemia e com o excesso de trabalho… tenho sentido muita falta dessa descoberta da cidade, até porque ela própria é um organismo vivo em constante mudança. É algo que estou a mudar. Ando muito de bicicleta, que me permite percecionar a cidade do Porto de outra forma.
por Sara Oliveira
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