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Reportagem
Cultura em Expansão
10 anos a transformar pequenas salas em grandes palcos
Cultura em Expansão 2024

“Vamo-nos apertar!”, dizia o autarca do Porto, Rui Moreira, em 2017, a propósito da ida de Sérgio Godinho à Associação de Moradores da Bouça no âmbito do Cultura em Expansão, traduzindo, assim, a essência deste programa gratuito de promoção cultural e artística: fazer da cidade uma sala de espetáculos onde os artistas e o público estão próximos.

Aconteceu pela primeira vez em 2014 e tem vindo a percorrer vários espaços mais periféricos e menos conhecidos da cidade, convertendo-os em verdadeiros palcos alternativos com programação para toda a gente. Entre 2019 e 2020, o Cultura em Expansão, projeto da Câmara do Porto, passou a concentrar a sua programação em quatro polos específicos, tendo como parceiros coletivos artísticos que têm um duplo papel – o de programadores e dinamizadores do trabalho com as comunidades, nomeadamente o Teatro do Frio na Associação de Moradores do Bairro da Pasteleira; a Sonoscopia na Associação de Moradores da Bouça; a Confederação no Grupo Musical de Miragaia; e o Visões Úteis na Associação Nun'Álvares de Campanhã. Há, ainda, a Programação Satélite que “apresenta um conjunto de iniciativas, para lá dos quatro territórios em foco, dando continuidade a um trabalho de articulação com outras associações, estruturas e artistas”.


Ao longo de uma década, foram promovidos mais de cinco centenas de eventos em palcos convencionais e em palcos incríveis, envolvendo muitas mãos cheias de artistas internacionais, nacionais e locais (leia-se aqui moradores destes territórios, como é o caso do Sr. Amadeu, da Pasteleira, que fomos conhecer). Mas mais do que de quantidade, poderá falar-se da riqueza e da diversidade das experiências artísticas e culturais criadas para e com a comunidade. Isto porque a aposta em termos de programação passa por oficinas com as comunidades e projetos de continuidade.


No mês em que é apresentada a programação do Cultura em Expansão 2024, fomos falar com várias pessoas que têm participado neste projeto que quer envolver toda a cidade.

Cultura em Expansão 2024

Cartaz da edição de 2024 do Cultura em Expansão

Pasteleira

Cultura em Expansão 2024

Amadeu Santos, da Associação de Moradores do Bairro da Pasteleira, © Nuno Miguel Coelho

Em cada bairro, um artista


Marcamos encontro com Amadeu Santos à porta da Associação de Moradores do Bairro da Pasteleira. Espera-nos com um molho de chaves na mão. “Sou o carcereiro”, atira, brincalhão, enquanto se apressa a abrir a porta para nos mostrar o “salão de festas” impecavelmente asseado e enfeitado. Amadeu tem 80 anos, vive há 50 na Pasteleira e faz parte desta associação desde 1982.


Em 2022, o Teatro do Frio, dinamizador do polo da Pasteleira do Cultura em Expansão, desafiou o artista plástico Ruca Bourbon (Doutor Urânio) a conhecer este antigo torneiro mecânico, “artista nas horas vagas”, fã de Julio Iglesias e Roberto Carlos, e dono de uma eclética coleção de vinis (desde o Conjunto António Mafra, passando por The Fools e David Bowie, até ao Hino Nacional da República Soviética Socialista). É dos encontros que nascem as possibilidades e deste nasceu o “Baile dos Discos do Amadeu”.

“A minha aproximação ao Cultura em Expansão aconteceu por mero acaso”, conta. “O pessoal que vinha aqui, como foi o caso do Ruca, mostrou interesse nos meus discos, mas, depois, também lhes apresentei as coisas que fazia; caricaturas, poesia, desenhos, além de trabalhos artesanais que faço para passar o tempo e ganhar uma coisita de vez em quando. Eles disseram que estava aqui ‘uma obra muito porreira’ e resolveram montar um espetáculo.”


Amadeu não esquece aquele baile: “Foi a primeira vez que cantei na minha vida. Foi a primeira vez que declamei poesia feita por mim. E foi uma experiência que tive, pensei que ia gaguejar; fiz uma desgarrada um pouco ‘picante’ — ainda não estava pronta, mas depois o Ruca disse ‘vamos lá fazer isto!’, e ensaiámos — e foi um espetáculo”, recorda, de sorriso no rosto. “Nunca pensei na minha vida… eu estava à-vontade, já parecia um artista feito, cheio de palco; a família veio ver e acabou por não ter palavras”, diz-nos sem esconder a vaidade. — Este é um dos objetivos do Cultura em Expansão: Potenciar a liberdade de criação artística de pessoas que nunca se imaginaram a pisar um palco.

Cultura em Expansão 2024

"Baile dos Discos do Amadeu”, © Renato Cruz Santos

Cultura em Expansão 2024

Ramos "Indiano" com CRUA no projeto "Em Casa" ©Renato Cruz Santos

Outro espetáculo de que Amadeu ainda se recorda aconteceu o ano passado e foi promovido pelo coletivo CRUA. Tratou-se de um concerto de música tradicional ibérica, de “umas meninas que tocavam adufes", e que foram acompanhadas por um amigo seu “a quem todos chamam ‘Indiano’, por ter muita cultura indiana, e que sabe tocar trancanholas”. Este foi o culminar do projeto “Em Casa”, que levou este coletivo de adufeiras a percorrer o bairro da Pasteleira, durante cinco dias, oferecendo música e recebendo, em troca, receitas.


Fruto destes encontros, este ano vão nascer dois projetos artísticos: Desasossegar e Frente-a-Frente. O primeiro, liderado por Liliana Abreu, do CRUA, será uma espécie de “ode ao adufe" e propõe diferentes atividades com a comunidade da Pasteleira: sessões de toque e canto com moradoras locais, uma oficina de construção de adufes, e um encontro/piquenique que vai juntar estas novas adufeiras e todos os que nele queiram participar. Em dezembro, acontece a apresentação final. Já o Frente-a-Frente coloca novamente em palco Ramos "Indiano”, que tem “um arquivo impressionante” de bandas sonoras de Bollywood sobre as quais canta e toca trancanholas. Desafiados pelo Teatro do Frio a criar uma peça a partir do arquivo de Ramos "Indiano”, Inês Campos e Vahan Kerovpyan apresentam, nesta edição do Cultura em Expansão, um projeto que “pega em culturas pop do mundo, apropriando-se da potência delas com tambores, voz e corpo e voltando a torná-las prática popular”.

Bouça

Cultura em Expansão 2024

Concerto de Thomas Rohrer, Sainkho Namtchylak e Andreas Trobollowitsch na Associação de Moradores da Bouça, © Renato Cruz Santos

Experimentar não os incomoda


Na Bouça, os moradores locais são presença assídua dos eventos do Cultura em Expansão. “É um sítio aonde me lembro de ir ver concertos underground no início dos anos 90; alguns concertos eram bastante invulgares para a altura. Portanto, há uma história um bocadinho diferente de outras zonas que são alvo deste programa”, conta Gustavo Costa, diretor artístico do Grupo Operário do Ruído (GOR) e fundador da associação de música experimental Sonoscopia, que dinamiza aquele polo.


Também Tânia Dinis, artista convidada e espectadora regular deste programa de promoção artística, aponta a Bouça como um caso particular. “Na Bouça, a programação que é feita nem sempre é ‘fácil’, e tu vês a comunidade lá. Aliás, uma das senhoras que fui entrevistar para um trabalho meu estava a ver a movimentação e já estava a perguntar ‘O que é que vai acontecer hoje? É teatro? É música?’ Na Bouça, existe uma proximidade muito grande.”

Foi em 2020, ano marcado pelo distanciamento social, que nasceu o Grupo Operário do Ruído (GOR) a partir de um desafio da Sonoscopia, no âmbito do Cultura em Expansão, reunindo gente com e sem experiência musical à volta da música experimental. “Pensámos em criar um projeto comunitário aberto a toda a gente, de todas as idades, partindo de um outro princípio muito simples que era não haver um preconceito sobre aquilo que é música e o que não é; ou seja, partimos do princípio de que toda a gente pode fazer música e tudo pode ser transformado em música, desde que haja uma ideia; e ideias, toda a gente tem, independentemente das suas habilidades técnicas”, defende Gustavo Costa.


Neste projeto, a música vai sendo construída à medida que se desconstroem preconceitos. “Queremos desconstruir tudo o que seja uma convenção sobre o que é música”, afirma este músico. No GOR, objetos do quotidiano, como utensílios de cozinha e materiais descartados, transformam-se em instrumentos musicais “insólitos, aborrecidos ou divertidos”.

Cultura em Expansão 2024

Grupo Operário do Ruído (GOR), © Renato Cruz Santos

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Grupo Operário do Ruído © Dinis Santos

Em 2024, o GOR vai fazer mais barulho


O GOR constitui-se como um bom exemplo de um projeto que tem conseguido perdurar no tempo, e que tem vindo, também, a conquistar autonomia, fazendo jus à divisa “O ruído unido jamais será vencido!”. “Quando criámos este grupo, queríamos que fosse ganhando uma autonomia gradual. Já tínhamos tentado fazer isso noutros projetos, e sabíamos, por isso, que ia ser extremamente difícil, mas, ao fim de quatro anos, ver que o grupo ainda se mantém, que tem vida própria, além do Cultura em Expansão, ultrapassou em muito as expectativas que tínhamos inicialmente”, declara, orgulhoso.


Todos os anos, este grupo, que mantém músicos desde a sua primeira formação, renova o apelo à participação pública. Composto por cerca de 15 pessoas, este ano vai duplicar o número de elementos. “Temos sempre muita gente a querer participar, e este ano vamos fazer uma coisa em grande; vamos abrir a participação a mais gente. Claro que é sempre mais difícil juntar muita gente, mas também acho que podemos atingir resultados bastante diferentes; e, musicalmente, queremos ir para um registo ligeiramente diferente daquilo que temos feito nos anos anteriores", revela o diretor artístico. 


Apesar de manter o nome, o GOR vai deixar de ser "um ensemble" para passar a ser "uma orquestra”. “Queremos fazer uma edição, para ‘pôr cá fora’ algum do trabalho que foi feito durante todos estes anos”, adianta, acrescentando que este grupo vai ter “um trabalho continuado” ao longo do ano. “Por ano, costumávamos apresentar dois projetos separados; este ano, vamos criar um de maior escala que será trabalhado até dezembro.” Do programa de 2024 constam uma oficina do GOR com o vocalista e trompetista britânico de jazz Phil Minton, um ensaio aberto, em setembro, e o espetáculo final, em dezembro.

Quem quiser juntar-se ao GOR pode fazê-lo até 12 de abril, através do email sonoscopia@gmail.com. As inscrições são gratuitas.

Bouça ganhou novo fôlego com o Cultura em Expansão


Depois de nos anos 90 ter sido palco de concertos vanguardistas, a Associação de Moradores da Bouça esmoreceu a sua atividade cultural. Gustavo acredita que o programa camarário foi fundamental para a sua renovação: “Acho que este impulso foi dado pelo Cultura em Expansão, que fez com que a associação ganhasse um novo fôlego e ganhasse vida própria”, ressalva. “Acho que isso é um dos pontos mais importantes de todo este programa; deu-se ali um impulso não só a uma zona, mas a uma estrutura histórica, que está a começar a recuperar terreno; já fizeram algumas obras, é um espaço que, por ser mais central, pode ter uma dinâmica com ou sem o Cultura em Expansão, e eu acho que isso é o mais gratificante. O nosso papel aqui é trabalhar com as pessoas de lá, mas sempre respeitando totalmente a zona, as pessoas e a associação, que tem a sua história”, conclui.

Cultura em Expansão 2024

Concerto de Thomas Rohrer, Sainkho Namtchylak e Andreas Trobollowitsch na Associação de Moradores da Bouça, © Renato Cruz Santos

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Cultura em Expansão 2024

Miragaia

Cultura em Expansão 2024

"Memoratório: Do usado e preservado Grupo Musical de Miragaia", ©Renato Cruz Santos

Em Miragaia, recordar é viver: resgatar o passado para projetar o futuro


Deixamos para trás a Bouça e seguimos para a zona ribeirinha da cidade onde está sediado o Grupo Musical de Miragaia (GMM), o terceiro polo do Cultura em Expansão, que alberga, desde 2010, a Confederação - coletivo de investigação teatral, responsável pela gestão e programação do terceiro piso do edifício, dedicada, sobretudo, ao teatro e ao cinema.


Em Miragaia, a Confederação tem vindo a desenvolver trabalhos artísticos que desafiam a comunidade local a participar e que exploram, simultaneamente, o próprio território. São projetos construídos à volta das memórias e dos arquivos fotográficos pessoais e coletivos, como os Memoratórios: “Do usado e preservado Grupo Musical de Miragaia” e “Miragaia Foi à Guerra”. O primeiro teve como ponto de partida o arquivo fotográfico do Grupo Musical de Miragaia e resultou em “photo-conversas” – formato que mistura fotografia, performance e vídeo – gravadas pela artista multidisciplinar Tânia Dinis; o segundo partiu do encontro da investigadora e antropóloga Maria José Lobo Antunes com miragaienses que foram mobilizados para a guerra colonial, e que partilharam as suas memórias e coleções fotográficas.

O “Memoratório: Do usado e preservado Grupo Musical de Miragaia” teve duas edições, a primeira arrancou em 2020. A proposta inicial consistia em performances ao vivo, com um dispositivo cénico, em que Tânia Dinis conversava com cinco ou seis pessoas ligadas àquela coletividade local, “partindo desta ideia de poder falar sobre as fotografias ao vivo”, com público a assistir. “Iríamos estar sentados no sítio onde as fotografias foram tiradas e a ver as diferenças na arquitetura do espaço”. Mas a pandemia de COVID-19 trocou-lhes as voltas, e o projeto foi adiado. Acabaram por criar um objeto fílmico, para ser exibido online, “já que as conversas iam ser filmadas”. Surgiram, assim, as “photo-conversas”.


As histórias que as fotografias (não) contam


Todas as fotografias guardam uma história que pode ser contada “de muitas maneiras ao longo dos anos”. Quem o diz é a antropóloga Maria José Lobo Antunes. Para esta investigadora, uma fotografia nem sempre é “transparente”; “olhamos para ela e achamos que conseguimos perceber o que está ali, mas, muitas vezes, o que vemos não é o que os seus proprietários ou os seus autores vêem, e isso também é surpreendente”. A mesma opinião tem Tânia Dinis, artista que se move entre a performance, o vídeo e a fotografia. “Uma fotografia não te conta só aquilo que está lá. O que não consegues ver na fotografia é, por vezes, o mais interessante, e foi o que aconteceu aqui”, afirma a artista que, durante quase três anos, conduziu o “Memoratório: Do usado e preservado Grupo Musical de Miragaia” (GMM).

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"Memoratório: Do usado e preservado Grupo Musical de Miragaia", ©Renato Cruz Santos

As fotografias das peças de teatro e dos seus intérpretes, dos sócios e dos bailes do GMM captaram a atenção de Tânia. “Estas fotografias acabam por contar também um bocadinho da história de Miragaia e, ao mesmo tempo, a história do Porto.” Através destas imagens também é possível “perceber as alterações que a cidade sofreu ao longo destes anos”, refere, acrescentando que muitos dos sócios que apareciam nas fotografias antigas ainda hoje frequentam o GMM. Um deles é Hélder Teixeira, sócio efetivo há mais de meio século e uma das pessoas que deu voz às histórias desta coletividade nas “photo-conversas”.


“O Hélder foi muito importante para mim [neste processo] porque tem uma admiração e uma paixão por este espaço, por esta história e por Miragaia”, conta. “Já não o via há um ano, encontrámo-nos, o ano passado, num espetáculo do Cultura em Expansão, e foi muito bom podermos ficar à conversa.” Esta artista gosta de descobrir histórias e gentes, é a partir delas que constrói muitos dos seus trabalhos, mas admite que os projetos artísticos com a comunidade podem, por vezes, ser “muito ingratos”: “Trabalhas com as pessoas, tu precisas delas para esse trabalho; elas acabam, de certa maneira, também a precisar de ti, mas depois quando o trabalho termina, elas podem sentir-se ‘esquecidas’, e ficas a pensar como é que arranjas forma de poder continuar esse trabalho.”

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"Memoratório: Do usado e preservado Grupo Musical de Miragaia", ©Renato Cruz Santos

A artista afirma, ainda, que os espetáculos do Cultura em Expansão que nascem de projetos com a comunidade têm impacto a vários níveis. “Existe um impacto grande nos artistas que vão às comunidades trabalhar, que fazem trabalhos de residência no local; e existe um impacto no espectador, que percebe aquela comunidade e a vida daquelas pessoas — porque há trabalhos que são sobre vidas. E existe, depois, o impacto na comunidade.”


Fundado em 1926, o GMM foi, durante décadas, o eixo gravitacional dos moradores desta freguesia ribeirinha: teve várias modalidades desportivas, como futsal e basquetebol, um grupo de teatro, e organizava várias festas e bailes anuais (como o baile que acontecia no sábado depois do Carnaval, o “Baile da Pinhata”, evocado por Rui Brandão numa “photo-conversa”). “A associação era fundamental para a freguesia de Miragaia, para o encontro de pessoas”, ressalva a artista, que espera que o GMM se mantenha “bem vivo” porque “este tipo de associações tem vindo a desaparecer”. Neste sentido, congratula-se por existir uma “colaboração estreita” entre a coletividade e a Confederação. “Por vezes, pode existir um choque de gerações, mas é saudável”, sustenta.

"Memoratório: Miragaia foi à guerra"


Maria José Lobo Antunes, antropóloga, tem cruzado na sua investigação temas como memória, história e guerra colonial. Nos últimos anos, tem estado, também, “a trabalhar sobre fotografia, e foi daí que surgiu o convite da Confederação para integrar o projeto ‘Miragaia foi à Guerra’”, explica. O contacto desta investigadora com moradores de Miragaia, antigos combatentes em Angola, Guiné e Moçambique, começou há mais de um ano. A base de trabalho são conversas, em contexto de entrevista e também em torno das suas coleções fotográficas, "aproveitando a oportunidade que ainda temos" de, 50 anos depois de 25 de Abril, falar com pessoas que vivenciaram a guerra colonial.


O primeiro momento público deste projeto aconteceu a 4 de novembro do ano passado, no auditório do Grupo Musical de Miragaia, sob a forma de residência/conversa, “num ambiente acolhedor, com um lanche”, e juntou, entre fotografias e memórias, as vozes de seis antigos combatentes naturais de Miragaia. Cada um deles escolheu uma fotografia da sua coleção pessoal sobre a qual podia discorrer.

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Maria José Lobo Antunes, © Renato Cruz Santos

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"Miragaia foi à Guerra", © Renato Cruz Santos

Também a investigadora selecionou fotografias do arquivo pessoal destes ex-combatentes, que foram projetadas na parede perante o público enquanto lhes pedia que falassem sobre elas. “A ideia era aproximarmo-nos de um contexto mais familiar, quando as pessoas nas suas casas, nas casas dos seus familiares, nos mostram fotografias e falam sobre elas”, afirma Maria José, frisando que neste evento “não participaram apenas ex-combatentes, mas também pessoas mais jovens, artistas e um público muito diversificado”.


O próximo momento público acontece um ano depois, a 2 de novembro de 2024. Serão apresentadas curtas-metragens que resultam de “um longo trabalho” realizado pela investigadora e pela Confederação, e será, ainda, lançado um caderno que integra “todo o material que não pôde ser contemplado nos filmes”. “Este é um projeto que acaba por ser longo porque implicou entrevistar dezenas de pessoas durante vários meses; fizemos várias entrevistas exploratórias, depois entrevistas gravadas e, por fim, algumas filmadas”, conta.

Miragaia cosmopolita e aberta


Do retrato de Miragaia dos anos 60 e 70 fazem parte as condições de vida difíceis: o trabalho duro e precário, a insalubridade e a constante ameaça de cheias do rio Douro. Ainda assim, a investigadora destaca “o contexto muito diferente” desta freguesia ribeirinha comparativamente a outros meios do país onde recolheu histórias da guerra. “Estes homens, que tiveram infâncias muito semelhantes, passadas na rua a jogar à bola — e a fugir da polícia, que os proibia de jogar à bola — cresceram num meio urbano e cosmopolita; apesar de se viver num regime ditatorial, havia todo um movimento nacional e internacional que passava por ali, com a Alfândega e os marinheiros”. E, apesar de muitos terem “uma escolaridade baixa”, na altura em que foram para a guerra, “tinham um mundo muito mais amplo, tinham acesso à televisão no Grupo Musical de Miragaia, e eram pessoas que liam, e muitos eram operários de pequenas gráficas”, revela.

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Apresentação de "Miragaia foi à Guerra", © Renato Cruz Santos

Campanhã

“A mais bela fogueira começa com pequenos ramos”


ZHA! estreia em junho no TMP - Rivoli. Trata-se de um espetáculo produzido pelo Visões Úteis, e financiado pelas fundações Calouste Gulbenkian e “la Caixa”, através do programa Partis & Art for Change, que envolveu, na sua criação, cerca de 40 participantes, na sua maioria jovens de Contumil, Lagarteiro e Cerco. “Não vai ser um concerto; não vai ser teatro. Vai ter um formato híbrido em que estas linguagens se juntam numa história que é contada por ciganos e não ciganos”, avança a sua diretora artística, Inês Carvalho. Este projeto nasceu a partir de outro criado, em 2021, para o Cultura em Expansão.


Há um provérbio cigano que diz que “a mais bela fogueira começa com pequenos ramos”. Se ZHA! for a fogueira, “Brado – Encontro de Vozes em Cigano Canto” é um dos “pequenos ramos” que a fizeram arder, e resultou do trabalho de criação colaborativa entre a artista Margarida Mestre, a Orquestra Ciga-Nos e elementos das comunidades ciganas dos bairros do Lagarteiro e Contumil. “O Cultura em Expansão é que nos permitiu fazer este salto do território, das famílias, dos bairros para a cidade”, afirma Inês, frisando que ZHA!, “em termos de circuito artístico, de programação, começou com o Brado”.

Cultura em Expansão 2024

"Brado" © Renato Cruz Santos

Cultura em Expansão 2024

"Brado" © Renato Cruz Santos

Se recuarmos mais no tempo, chegamos à Equipa de Rua Oriental que trabalha com crianças e jovens destas zonas da cidade e que, através do projeto Sinergias, criou a Orquestra Ciga-nos com jovens das comunidades ciganas dos bairros de Campanhã. Os educadores que desenvolvem, há anos, um trabalho de intervenção social nestes territórios, foram estabelecendo “relações de confiança e proximidade”, como explica o mediador social André Sousa. “A música, a dança e o canto são uma forma de relacionamento, de comunicação, e as relações entre os educadores e as pessoas destas comunidades eram estabelecidas através da música”, conta.


Inês Carvalho, mediadora e criadora artística do Visões Úteis, parceiro do Cultura em Expansão no polo de Campanhã, afirma que quiseram “criar um contexto artístico” para que a Orquestra Ciga-nos e o património cigano pudessem “começar a entrar nas programações artísticas e culturais da cidade”. "Brado" foi esse “primeiro contexto” através do convite a Margarida Mestre para trabalhar com a comunidade cigana. “Foi um projeto revelador e muito inaugural no que diz respeito a esta incursão”, recorda Inês.


André também frisa a importância deste projeto por ter sido “o início do cruzamento entre o trabalho educativo e comunitário e o trabalho com artistas profissionais”. “Este cruzamento permitiu a valorização e a visibilidade deste património dentro das próprias comunidades e fora das comunidades”, sublinha.

Para este ano, no âmbito do Cultura em Expansão, o Visões Úteis programou espetáculos de tablao flamenco com as comunidades ciganas de Campanhã, que arrancam já em março. Ao todo, serão quatro tablaos flamencos que vão acontecer ao ar livre, levando o público aos bairros de Campanhã para assistir a "um espetáculo profissional que integra convidados locais". Para isso, desde janeiro, uma vez por semana, os jovens destas comunidades têm aulas de flamenco. “Conseguimos garantir a continuidade de um espaço de criação comunitária”, afirma Inês, satisfeita. “Estas aulas de flamenco têm sido encontros entre talentos locais, de várias gerações, e artistas profissionais, e têm sido um acontecimento e um deslumbramento de ambas as partes”, garante.


As aulas são lecionadas pela bailaora Francisca Durão, artista portuense que viveu 13 anos na Argentina, e que já em 2019 tinha trabalhado com as comunidades ciganas de Contumil. “Nessa altura, a Orquestra Ciga-nos tenta chegar a um outro patamar de criação artística por vontade dos jovens", lembra André. Também agora as aulas de flamenco foram uma proposta dos jovens destas comunidades. “Este género muito específico, com imensa técnica, está a encantá-los”, afiança Inês.

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ZHA! ©DR

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TRIC – Tardes Regaladas nas Ilhas de Campanhã, ©Renato Cruz Santos

A criação de projetos artísticos com a comunidade tem sido uma aposta clara do Visões Úteis para a programação do Cultura em Expansão. “O rácio de espetáculos que são apenas colocados como récitas, espetáculos fechados que vêm e são apresentados, tem vindo a diminuir em relação àqueles que nascem realmente do território e que são construídos a partir de e com as populações”, assegura a mediadora artística.


Neste sentido, para a edição deste ano do Cultura em Expansão estão, ainda, previstos outros projetos que funcionam numa lógica de continuidade, como o espetáculo encenado por Fernando Moreira (Astro Fingido), envolvendo várias companhias de Teatro Amador de Campanhã, e que parte das histórias recolhidas, em 2023, pelo coletivo Maria Zimbro, no decurso das residências do projeto "Acrescenta um Ponto". Já nas edições de 2021 e 2022, a narração oral tinha sido o ponto de partida para a criação dos projetos "Roda de Histórias" e "TRIC – Tardes Regaladas nas Ilhas de Campanhã", que uniram habitantes e visitantes desta zona da cidade em torno da arte de contar histórias.

Cultura em Expansão 2024
Cultura em Expansão 2024
Cultura em Expansão 2024

Projetos comunitários: o tempo é o fermento


Os dinamizadores de projetos que envolvem as comunidades, criados no âmbito do Cultura em Expansão, apontam o tempo como fator determinante para o seu êxito. “Só com tempo e envolvimento é que as coisas acontecem. Não podemos forçar nada; é preciso dar tempo ao tempo e esperar que as pessoas também sintam uma curiosidade natural, que não tenham vergonha ou preconceito [de participar]”, afirma Gustavo Costa, diretor artístico do Grupo Operário do Ruído. Também Tânia Dinis defende que os projetos criados com a comunidade devem demorar-se no tempo. “Os espetáculos que são feitos com a comunidade funcionam melhor quando o processo é mais longo, quando existe uma continuidade.”


Exemplo disso mesmo é “Miragaia foi à Guerra” que, à semelhança do primeiro Memoratório, tem uma duração de dois anos. Este tempo permitiu à antropóloga Maria José Lobo Antunes conhecer melhor os antigos combatentes, mas também resgatar material “valioso” para o projeto. “Um dia entrevistei um senhor que tinha histórias absolutamente fabulosas, mas não tinha nenhuma fotografia da guerra porque se divorciou e as fotografias ficaram com a ex-mulher; esta história foi sempre ‘uma pedra no sapato' para mim porque era um interlocutor com o qual eu queria muito trabalhar”, revela. Como o projeto ainda está em curso, no verão do ano passado, este antigo combatente contactou a investigadora para informar que a filha, que vive no estrangeiro, tinha conseguido recuperar as fotografias que ele não via há mais de uma década. As memórias deste ex-combatente foram, então, registadas em filme e vão integrar este Memoratório.  “Felizmente, tivemos tempo para poder recolher [este material]; as histórias que esta pessoa tem são muito boas; ele é um grande contador de histórias, e acabámos por descobrir que tem uma coleção fotográfica notável.” Estas e outras histórias serão dadas a conhecer ao público no dia 2 de novembro, no auditório do Grupo Musical de Miragaia.



por Gina Macedo


Cultura em Expansão 2024

A artista multidisciplinar Tânia Dinis © Nuno Miguel Coelho

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