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Sabem o que fazem os tanoeiros? Sem eles não podíamos beber Vinho do Porto.
Apesar de ser um ofício secular (1443 é a data do primeiro registo da atividade dos tanoeiros do Porto), a tanoaria é ainda uma profissão desconhecida. Em época de vindimas no Douro, a Agenda Porto foi ao encontro de dois tanoeiros – duas gerações – que trabalham cascaria centenária na qual repousa o vinho generoso mais famoso do mundo. É, pois, no contacto com esta madeira que o vinho melhora o seu perfil e ganha novos atributos e aromas.
Na indústria do Vinho do Porto, o ofício consiste em consertar e reparar madeira muito antiga, autêntico património vinícola. Este trabalho de restauro é crítico porque qualquer defeito ou ranhura pode significar centenas de litros de vinho desperdiçado.
Parede da oficina de tanoaria da Taylor's © Renato Cruz Santos
Atravessámos o rio até à outra margem para irmos conhecer a oficina de tanoaria da Taylor’s. Mal entramos, as narinas são invadidas pelos aromas da uva fermentada proveniente da cascaria que repousa à espera de ser consertada. Manuel e Ricardo são pai e filho, mas ali tratam-se como colegas de mester.
Manuel Jesus, 58 anos, já leva mais de meio século na arte da tanoaria, e está na Taylor’s desde 1998. Conta que a primeira vez que “decidiu pegar num martelo e escangalhar um caneco para o consertar” teria quatro anos. Foi quando o seu pai, Joaquim, também ele tanoeiro, emigrou para França (a viagem durou apenas alguns meses) e um cliente entregou na oficina um caneco para arranjar. Na altura, Manuel não conseguiu consertar o caneco, e disso nunca se esqueceu, mas quando o pai regressou, começou a trabalhar no ofício. Conta que o pai “compunha pipos de 100 litros e quando chegava a parte final, que há sempre uns arcos para apertar, pô-lo a martelar”.
“No início, achava engraçado, mas depois queria era fugir, queria era brincadeira. Trabalhei em casa, com o meu pai, até aos 20 anos, depois fui para uma tanoaria e depois vim para aqui”, resume, enquanto bate com o malho no tampo de um pipo. “Faço isto de olhos fechados”, garante, a rir, e explica que o objetivo “é testar se está bem apertado”. Se for um som “choco”, é sinal de que tem de ser apertado. Aqui, não basta ser habilidoso com as mãos, é preciso ter bom ouvido.
Manuel Jesus © Renato Cruz Santos
As pipas que vemos na oficina vieram das caves do Vinho do Porto, em São João da Pesqueira. Muitas delas estão marcadas com um “O”, a tinta branca, porque as aduelas (ripas de madeira) que as compõem têm problemas. Os tanoeiros costumam percorrer os corredores das caves, munidos de lanterna, uma faca e papel vegetal, inspecionando os lotes, “para estancar pipas”. As peças que não podem ser reparadas in loco são marcadas e levadas para a oficina onde os arcos são removidos a golpes de malho, e as aduelas são examinadas uma a uma.
“A obrigação do tanoeiro é testar a pipa e verificar eventuais problemas; abrimos a pipa e verificamos aduela por aduela, e substituímos as danificadas. Alguns problemas conseguimos detetar por fora, outros só por dentro; às vezes, estão mais danificadas do que supúnhamos”, explica Manuel.
Este experiente tanoeiro afirma que “o vinho também se irrita”, referindo-se à sua fermentação, que o faz crescer dentro da pipa, deixando-a sob pressão, e “levando a que ceda nas zonas onde está mais frágil”. É nestas situações que Manuel entra em ação para uma espécie de primeiros socorros das pipas, em que “só precisa de uma faca e de um pedacinho de papel vegetal para ‘salvar’ o vinho”.
A faca e o papel vegetal que Manuel utiliza para estancar fugas das pipas © Renato Cruz Santos
Manuel e Ricardo Jesus com uma aduela © Renato Cruz Santos
Apesar de se verificar uma evolução nalgumas ferramentas e maquinaria utilizadas (“os novos se trabalhassem com as ferramentas antigas, desistiam”, assegura Manuel), a tanoaria continua a ser essencialmente artesanal. É uma profissão que requer sensibilidade, tempo e paciência. Que o diga Ricardo Jesus, 28 anos, filho de Manuel, que começou a trabalhar neste setor aos 19, e será um dos mais jovens tanoeiros do país. O pai, assegura, foi “o principal professor”. “A arte da tanoaria não é como as outras; não é em dois ou três anos que ficas a saber [tudo]. É preciso mais tempo. Porque a base de tudo é o olho; não há fita métrica. Nós não queremos a fita métrica – só se for para trabalhar balseiros grandes. Coisas pequenas, é tudo a olho, e é por isso que é muito mais difícil.”
Ricardo recorda que, “com 14 anos, não era nada disto que queria”. “Via o meu avô e o meu pai lá em casa; às vezes, acompanhava o trabalho deles ao sábado. Andava a estudar; entrei na arbitragem, mas depois quis parar e surgiu a oportunidade de vir para aqui para a montagem e desmontagem [de cascos]. Depois, comecei a ganhar o gosto. E, com o tempo, comecei a interessar-me mais – pelo Vinho do Porto, também”, conta.
O jovem lamenta que a sua profissão continue a ser desconhecida e regozija-se, por isso, com a reportagem da Agenda Porto. “É muito raro as pessoas saberem o que é um tanoeiro, nem desperta muito interesse. Mas desperta interesse abrir uma garrafa de Vinho do Porto! Por isso, sempre que posso, dou a conhecer o que faço, em que consiste o meu trabalho, e também levo as pessoas às caves do Vinho do Porto e ao Douro.”
Ricardo vê-se ainda como um aprendiz de tanoeiro e afirma que o que mais gosta é de poder “trabalhar com madeira”. Além disso, considera “fascinante abrir as pipas e sentir o cheiro a Vinho do Porto, que já tem mais de 100 anos”.
Conta que ficou a saber que são precisas entre 30 e 35 aduelas para fazer uma pipa, porque quando as desmonta, marca-as a todas. “Ainda é um bocadinho difícil para mim se as aduelas se soltarem e a pipa se escangalhar; se elas estiverem marcadas, sei como as devo voltar a montar, como se fosse um puzzle.”
Ricardo Jesus © Renato Cruz Santos
Apesar de haver poucos jovens no setor, está seguro de que a tanoaria não vai acabar. “Esta arte em si, de consertar as pipas, não vai acabar, porque vai ser sempre preciso um tanoeiro nas caves do Vinho do Porto.” Admite, contudo, que “os jovens da sua geração não gostam porque é um trabalho muito sujo, muito manual e requer muito tempo [de aprendizagem] e concentração”. O futuro da profissão, acredita, passará por salários mais atrativos. Quanto a si, garante que “a paixão vai continuar” e que vai continuar a aprender. Porque a arte da tanoaria é como o Vinho do Porto: melhora com o tempo.
Enquanto conversámos com Manuel e Ricardo, registámos vários termos e palavras utilizados nesta profissão. Deixamos aqui uma espécie de glossário da tanoaria:
Baixete: estrutura que serve de repouso à pipa;
Chanfrar: dar torno ao arco;
Encavilhar: juntar a madeira;
Enxó: instrumento para destabuar;
Gato: utensílio de tanoeiro para arquear as vasilhas; peça de ferro com que se endireitam as aduelas.
Cada arco que compõe um casco tem um nome diferente. São eles: cabeça, jabre, colete, rabo-de-palha, sobrebojo e bojo.
Nota: usa-se a palha (junco) para vedar melhor o arco denominado rabo-de palha; chama-se assim, precisamente, porque é o arco onde a palha termina.
© Renato Cruz Santos
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