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Conjugar o Porto
"Flanar" com Minês Castanheira
Entrevistas
Conjugar: Flanar com Minês Castanheira

“Esta cidade não é uma cidade, é um vício." Apropriamo-nos do “aviso” de Jorge de Sousa Braga, poeta e médico, acerca do Porto para incitar Minês Castanheira a falar sobre a sua relação com a Invicta, uma cidade literária e marginal por onde gosta de se passear. “Todos os grandes escritores, todos os grandes pensadores, inclusivamente estrangeiros, tiveram de escrever sobre esta neblina, é uma neblina poética, é uma luz que é muito própria do Porto… É o Porto das margens, é o Porto clandestino, é o Porto marginal; é esta coisa de ser a segunda cidade, a profunda história literária que tem”, desfia. E recorda, a propósito, o Coro Intergeracional e Multicultural da Palavra Dita, um dos projetos que o Bairro dos Livros, que fundou ao lado de Catarina Rocha, desenvolveu entre setembro de 2023 e março deste ano, através dos Museus e Bibliotecas do Porto, e que se dedicou a reescrever o Cancioneiro do Porto. “Quando nós fizemos isso, as pessoas diziam que o Porto sabe andar a direito, mas gosta de andar ao contrário. Eu acho que tem que ver com esta coisa de ser a ‘segunda cidade’, de estar longe do poder, mas perto do resto do país; há uma maneira muito própria de pensar no Porto”, defende.

Conjugar: Flanar com Minês Castanheira

© Nuno Miguel Coelho

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© Nuno Miguel Coelho

Poeta, comunicadora e diretora criativa, com fortes inclinações para livros, comida e tricô (revela que aprendeu a tricotar na pandemia, através de vídeos no YouTube, e mostra-nos uma camisola que está a acabar – falta-me uma manga! –; confirmamos que tem jeito), Minês é, também, uma contadora de histórias. Sabe muitas sobre os jardins, as ruas e praças do Porto, e quase todas elas envolvem pensadores, escritores e poetas. 

Marcamos encontro no Jardim de Arca D’Água, onde, em 1866, Antero de Quental e Ramalho Ortigão se enfrentaram num célebre duelo por causa da “Questão Coimbrã”. “Praticamente todos os jardins do Porto são sítios que têm histórias literárias, ou militares, e acho que nós não os valorizamos suficientemente”, afirma. “Se gostas de histórias, se gostas de ouvir uma boa história, que é uma coisa que todas as crianças e todos os adultos gostam, é impossível não te apaixonares pelas histórias que esta cidade conta; e são as histórias dos livros, dos escritores, das relações de afeto que aqui aconteceram”, defende, sublinhando que “a história do Porto é literária também”.


Para Minês, o Porto não é apenas um território geográfico, mas um espaço afetivo que moldou a sua arquitetura interior. Para isso, terão contribuído os poemas sobre a cidade que, em pequena, ouvia o seu pai dizer. “Cresci numa casa onde se gostava muito do Porto, onde os poemas sobre o Porto faziam parte da minha vida; o meu pai citava-me de cor poemas que, mais tarde, na idade adulta vim a compreender de outra maneira”, conta.

Mapear o Portugal literário

Estudou jornalismo, mas nunca se viu como jornalista. Sempre soube que a literatura era a sua vocação. Os livros, companheiros desde a infância, foram sempre o seu refúgio, e o Bairro dos Livros, fundado há 13 anos, tornou-se o veículo perfeito para partilhar essa paixão. Dentre os vários projetos, destacam-se, por exemplo, os guias literários sobre o património cultural de vários territórios do país; o primeiro guia, lançado em 2018, foi sobre a cidade do Porto. O objetivo “era dar visibilidade às livrarias, aos alfarrabistas, mas depois sentimos que fazia falta sugerir percursos literários na cidade que não fossem exclusivamente turísticos”, conta. Entretanto, seguiram-se os mapas literários de Penafiel, Baião, Évora, Matosinhos e Póvoa de Varzim. Neste momento, Minês e Catarina estão a a trabalhar num mapa literário sobre a Sertã e noutro sobre a escritora Agustina Bessa-Luís. E querem criar mais mapas: “O objetivo é mapear o país todo, e era fantástico se houvesse uma visão macro, que não há; a forma que nós encontramos de fazer valer este projeto, de o concretizar, é ir de município em município.”


Segundo Minês, os mapas literários “são uma ferramenta para os agentes locais, agentes turísticos, agentes culturais e as escolas usarem, e recuperarem algumas figuras que desapareceram”. E exemplifica: “Quando falamos em Baião, as pessoas falam do Eça de Queirós, que lá esteve dois dias, mas há tantas figuras [para descobrir]; uma delas é o visconde de Vila Moura, uma figura que não conhecia, que à minha geração não diz absolutamente nada, mas a partir do momento em que tu a encontras, vais encontrá-la em todo lado.” O visconde de Vila Moura, Bento de Carvalho Lobo, foi correspondente de Fernando Pessoa, cronista da revista A Águia e autor de uma vasta obra enquanto romancista, novelista, contista, cronista e crítico.  Minês conta-nos que ele é “o autor de uma das primeiras novelas lesbianas em Portugal e que, diz-se, tinha uma relação com [o poeta] Mário Pires Gomes Beirão”. “Na altura, Baião era um centro cultural, era um sítio onde viviam pessoas cuja influência intelectual era enorme. Entender isso, é entender melhor o país hoje”, concretiza.

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© Nuno Miguel Coelho

"Quando descobres qual é a história literária de um território, tu entendes melhor o que o território é hoje."

“Tu pegas em qualquer um desses escritores, Almeida Garrett ou Carolina Michaëlis, por exemplo, e consegues percorrer a cidade e encontrar a história e a atualidade. Tudo o que nós estamos a viver hoje faz mais sentido, e essa é a nossa lógica quando partimos para os territórios para fazer os vários mapas literários. Quando partes para um território e descobres qual é a história literária daquele território, tu entendes melhor o que o território é hoje. Tudo faz muito mais sentido. As coisas não nascem de nada”, defende. E acrescenta: “Basta uma geração para tu esqueceres um escritor, uma história que está na base, na raiz desse território.”


Foi precisamente o mapa literário do Porto que deu, depois, origem a “projetos muito maiores”. “Passámos de fazer eventos muito locais e pontuais à parte editorial; criámos a chancela ‘Bairro dos Livros’, e a determinada altura começámos a fazer projetos fora do Porto; instalações artísticas, programação cultural, projetos para outros municípios…”

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© Nuno Miguel Coelho

Percursos literários

Os percursos literários são outro projeto do Bairro dos Livros. O último, “Como se desenha uma amizade”, realizou-se em parceria com os Museus e Bibliotecas do Porto, e foi inspirado em “grandes amizades literárias”, como a amizade de Germano Silva e Manuel António Pina. A visita integrava leitura de excertos, histórias e episódios do património literário da Invicta, e pretendia traçar roteiros numa atmosfera deambulatória – porque Pina e Germano partilhavam o ritual de passear, sem destino, pelas ruas do Porto.


“Se as pessoas estiverem interessadas em fazer, nós fazemos. Nesse percurso, passeávamos por determinados pontos da cidade e contávamos histórias, como aquela de quando o Antero [de Quental], por exemplo, foi à varanda da casa da Carolina Michaëlis, na rua de Cedofeita, e fez um enorme discurso aos estudantes que ficou célebre e que veio nos jornais todos. Depois eu explico porque é que eles eram amigos, porque é que eles se conheceram”, refere.


A propósito dos percursos literários, também Minês partilhou connosco as suas deambulações pela cidade: “Passar na Moreira da Costa, na rua de Aviz, para dizer olá — são a quinta geração de livreiros; é preciso lutar pela permanência de espaços como aquele —; depois, ir ao La Copa comer um gelado, que é o melhor gelado do Porto, seguindo para a Biblioteca Municipal do Porto, em São Lázaro, e ir comer um cachorrinho na Praça dos Poveiros.” 

A biblioteca é um dos sítios onde passa mais tempo, o que “tem graça”, diz, porque é “alérgica ao pó dos livros”. “Muitas vezes, estou de máscara e de luvas porque mexo em livros antigos. São os deuses a gozar comigo”, ri-se.

“Para mim, é importante viver a cidade e passar por locais [de que sei histórias]… Eu passo na Torre dos Clérigos e penso no poema de Sena. Isto é real”, assegura. "Para a minha alma eu queria uma torre como esta, /assim alta, /assim de névoa acompanhando o rio […] " Ou quando passa na Praça de Gomes Teixeira, em frente à Fonte dos Leões, e vem-lhe à memória os versos do poema “Jardim da Cordoaria”, de Egito Gonçalves. “Tu estás num sítio que é história viva, a história recente e a história passada misturam-se”, afirma, entusiasmada.


Presença assídua em feiras do livro e festivais literários, Minês vai estar na Feira do Livro do Porto a moderar um ciclo de três conversas, A Poesia não vai à Missa, nos dias 6, 7 e 8 de setembro. “O meu objetivo nessas moderações é servir o público e servir o autor. (…) O que eu quero é ajudar as pessoas a fazer uma ponte com quem têm à frente”, conta. “É um trabalho fixe porque estudo, leio, conheço pessoas muito interessantes, estou em contacto com o público e vou-me apercebendo de alguns fenómenos engraçados”, refere. Quando lhe perguntamos que “fenómenos” são esses, atira: "Se as mulheres amanhã deixassem de comprar livros, as editoras fechavam todas."

São as vozes imigrantes que revitalizam a cena poética do Porto


No Porto, onde cada vez mais a poesia encontra novos palcos, Minês, também ela autora de vários livros deste género literário, reconhece o impacto das vozes estrangeiras, especialmente as brasileiras, que, diz, revitalizaram a cena poética da cidade. Segundo a poeta, o facto de hoje quase todas as noites podermos ouvir poesia num espaço diferente deve-se a três motivos: um deles é “a chegada em massa de autores – vou dizer  autoras estrangeiras, nomeadamente brasileiras – ao Porto. Isso revitalizou por completo a língua e a poesia. Foi das melhores coisas que aconteceu nesta cidade”, defende. “Já há anos que ando a dizer que a poesia vai ter em breve outro sotaque – e vai. Tenho visto, tenho lido, tenho consumido e tenho gostado muito do que essa comunidade trouxe.” Por outro lado, Minês insiste na ideia de que o Porto “sempre foi das margens, sempre foi muito mais permeável a movimentos contraditórios do que a capital”, salientando, ainda, que a poesia, “ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, está muito mais próxima da nossa linguagem normal, oral, diária, quotidiana, do que a prosa”. “Ninguém fala em prosa. Ninguém começa uma frase sabendo como a vai terminar. Todos nós falamos em verso. Nós falamos, paramos, continuamos, mudamos o sujeito, repetimos até os padrões, repetimos os verbos muitas vezes, quando estamos a explicar uma ideia, tudo isso é poesia; portanto, a poesia está muito mais próxima.”


No princípio era a dança é o título do seu último livro de poesia, editado, em 2022, pela Fresca Editores, e que conta na capa com uma ilustração da Catarina Rocha. A razão do título, conta, prende-se com o facto de, durante muitos anos, na infância e na adolescência, ter feito ballet. “A relação entre o movimento e o corpo da mulher, e esse movimento, esse impulso, ser o início de outras coisas é importante”, revela. “O poema ‘Abelha’ fala sobre isso: “No princípio era a dança,/ oração a uma competência elíptica,/ curva de conter pela asa, feita braço delta,/ Ferrão impercetível da canção de Dickinson,/ qual pétala alada em tudo que canta e voa (…)” — “Tem que ver com a referência a um conjunto de mulheres que foram importantes, desde a Isadora Duncan, a Emily Dickinson, a Ana Luísa Amaral, elas estão todas aí”, refere.


Conjugar: Flanar com Minês Castanheira

© Nuno Miguel Coelho

Como muitos autores, admite que “tem vergonha” dos primeiros livros. “Era muito miúda.” Mas não os renega: “Nós somos aquilo que fizemos.” E continua a escrever para si. “Sempre. Felizmente, a escrita é uma forma de vida, de estar.”

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© Nuno Miguel Coelho

O Bairro dos Livros e As Penélopes

O feminismo é uma bandeira do Bairro dos Livros. “Trabalhamos com mulheres sempre que possível”, afirma Minês. “Quando o Bairro dos Livros começou, nós éramos miúdas, não éramos casadas, não tínhamos filhos, estávamos a começar um projeto, trabalhávamos com outras coisas… há uma altura em que decidimos apostar profissionalmente neste projeto e a nossa vida também mudou: casámos, tivemos filhos, tivemos de integrar todos esses papéis e tivemos de lidar com esses desarranjos, essas dores de crescimento todas. Quisemos chamar para o pé de nós mulheres que estão exatamente na mesma situação. Isto é importante porque a arte não se separa da vida. Desse ponto de vista, o Bairro dos Livros somos nós, eu e a Catarina, em tudo o que nós temos de bom e de mau, de difícil e de fácil.”


Para esta comunicadora, o Bairro dos Livros deve, também, assumir-se como “um agente de mudança”, contribuindo para uma sociedade mais justa e igualitária. “Cada vez que nos pediam para programar um conjunto de conversas e os nomes que apareciam em cima da mesa eram todos masculinos, nós fazíamos força para que não fosse assim. Consciência, pensamento, reflexão e ação”, atira, acrescentando que “os encontros sobre literatura são, também, formas de governar a cidade no sentido de agir, de juntar pessoas, de provocar conversas. O nosso grande objetivo é esse enquanto cidadãs, enquanto mulheres, enquanto mães, enquanto artistas.”

A propósito deste trabalho que pretende dar mais visibilidade às mulheres, refira-se o projeto As Penélopes, que resultou de uma parceria com a Câmara da Póvoa do Varzim para o festival Correntes D’Escritas. O Bairro dos Livros desafiou 12 mulheres a escreverem 12 histórias originais que serviram de ponto de partida para a criação de 12 camisolas tradicionais poveiras com histórias diferentes para contar, “sempre pela mão das mulheres e do ponto de vista do feminino”, e que deram origem a uma instalação artística.


Com textos de Ana Luísa Amaral, Manuela Ribeiro, Isabel de Sá, Raquel Patriarca, Rosa Alice Branco, Margarida Vale Gato, Patrícia Portela, Luísa Monteiro e Gisela Casimiro, mas também Inês Cardoso, Cláudia Lucas Chéu e a cantautora Márcia, o projeto mereceu a distinção European Heritage Days, tendo sido selecionado, em 2022, como uma das vinte melhores histórias europeias ligadas ao património imaterial naquele ano. Além da Póvoa do Varzim, As Penélopes já foram ao Porto e a Coimbra, e Minês quer levar a instalação a mais territórios. “Nós procurámos escrever uma coisa que nunca tinha sido feita que é a história trágico-marítima da Póvoa do ponto de vista da mulher porque foi sempre amplamente escrita do ponto de vista do homem”, conclui.

por Gina Macedo

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