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Profissional de “people watching”, que é como quem diz em observar pessoas, e defensor acérrimo dos “hábitos tugões”, o músico gaiense, que encontra na cidade vizinha matéria-prima inesgotável para o seu trabalho artístico, falou-nos da sua relação com o Porto, onde, na infância, vinha emperiquitar-se.
Temos de fazer uma espécie de trabalho arqueológico para dar com o lugar da Invicta mais especial para David: era no número 6 da Rua do Dr. Artur Magalhães Basto que existia, desde os anos 60, a Barbearia Porto, entretanto desaparecida. David recorda que era lá que, em criança, ia com o pai cortar o cabelo.
“Quando era pequenino morava no Candal, já ali do outro lado do rio. Na altura, não havia shoppings em Gaia; as compras que os meus pais faziam eram todas aqui na baixa, e uma das coisas que gostava mais de fazer era vir aqui com o meu pai cortar ao cabelo. Cortava o cabelo sempre com o mesmo barbeiro, daqueles ‘à moda antiga’, que me contava muitas histórias. Acho que ganhei o gosto de ir ao barbeiro por causa do meu pai, que me trazia aqui religiosamente todos os meses, e cortava ele e cortava eu. É uma pena que tenha fechado.” — Mas apenas a cerca de três minutos de caminhada, um pouco mais acima, na Rua de Elísio de Melo, ao pé do Túnel de Ceuta e com vista para os Aliados, encontramos aberta uma das barbearias mais antigas do Porto, o Salão Veneza, onde somos recebidos com simpatia pelo barbeiro Pedro Almeida, habitante do Candal (não há coincidências!). Dois clientes estavam a ser atendidos; eram pai e filho, Paulo e Luís, que (imagine-se!) tinham vindo de Gaia ali, de propósito, cortar o cabelo. Ou, como diria David Bruno, emperiquitar-se.
Ainda a propósito de emperiquitar no Porto, o músico recorda, com nostalgia, o antigo Jardim da Avenida dos Aliados, local de eleição para os progenitores, nos anos 90, fazerem sessões fotográficas aos filhos. “Memória eterna ao jardim e às fotografias que os pais tiravam lá aos filhos quando eram pequenos, especialmente no Carnaval. Lembro-me de vir aí e, desde lá de baixo até à Câmara, estar tudo cheio de pais com os seus filhotes; os meninos vestidos de zorros, cobóis e polícias, e as meninas com os seus vestidos que não se sabia muito bem o que eram; pronto, eram princesas.”
© Renato Cruz Santos
© Renato Cruz Santos
Quem não é nenhum príncipe é Nando Manuel, a personagem principal do novo single de David Bruno, “SUPERXXXTILO”, mas que, garantidamente, gosta muito de se emperiquitar (vê o videoclipe!). Acabadinho de sair, este é o tema de avanço do seu quarto álbum de originais a solo, Paradise Village (ler “Paradise” em inglês e “Village” em francês), que deverá estar cá fora lá para novembro.
“É mais um trabalho regional, dedicado àquela terra, e que fiz para fazer justiça, porque ganhei, em 2020, a medalha de mérito cultural de Mafamude e Vilar do Paraíso, União de Freguesias. Está aprovada a desagregação [de freguesias], e não quero ficar com uma medalha que me foi dada por uma das partes por obrigação. Em primeiro lugar, é isso; e, em segundo, é um bocadinho daquilo que já tenho feito, que são aqueles trabalhos arqueológicos sobre as freguesias para onde eu vou morar.”
Em 2023, decidiu parar os concertos em nome próprio e diz, por isso, que teve "muito tempo” para preparar este novo álbum, que “é um tributo” a Vilar do Paraíso. “Com o ‘SUPERXXXTILO’, já lancei um vídeo que encontrei no canal de Youtube do antigo Presidente da Junta, o Dr. Elísio Pinto; foi aí que confirmei que o Pedro Abrunhosa morou lá e que já lá levou músicos famosos. Quantas terras em Portugal podem dizer que já receberam o Prince, a Shakira e os Rolling Stones!?”, atira.
Foi em setembro que deu “O Último Concerto” no Coliseu Porto Ageas, que, afinal, não foi o derradeiro, embora, garante, “era para ser”. O músico receava “começar a saturar” o seu público. “Julgo que na minha carreira nunca serei uma pessoa que anda a tocar por tocar. Não queria saturar as pessoas e queria fazer uma paragem.”
“Quando foi o concerto do Coliseu até tinha um bocado de receio. Sinto que hoje a música consome-se muito mais rapidamente do que antes. As pessoas ouvem uns meses e depois fartam-se — exceto as pessoas com mais idade, e tenho a sorte de ter um bocado desse público que ouve um álbum de há não sei quantos anos e gosta de ti e lembra-se de ti para sempre”, afirma.
Além disso, o músico estava, também, prestes a lançar, em outubro, o novo álbum de Conjunto Corona, ESTILVS MISTICVS, e considerou que Portugal era "pequeno demais” para tantos projetos simultâneos porque “não tocam todos, só toca um”. “Até à data, também tinha andado a fazer concorrência a mim próprio, que era uma coisa mesmo estúpida. Tinha não sei quantos álbuns, não sei quantas bandas ao mesmo tempo no mercado, e ia dar concertos com todos”, diz, sublinhando que “é preciso dar tempo aos trabalhos para viverem e respirarem”.
David Bruno no Coliseu Porto Ageas, © Simão Costa
Felizmente para os fãs, que o continuaram a ver com Conjunto Corona, não faltará muito para que voltem a ver David Bruno em cima do palco a apresentar o novo trabalho a solo. A paragem foi mais curta do que julgava. “Tenho aquele bichinho carpinteiro... Morava em Vilar do Paraíso e comecei a procurar material sobre a freguesia. Ouço o Pedro Abrunhosa dizer que trouxe lá a Shakira, o Prince… e começo a ficar com ideias. Comecei a ouvir mais coisas sobre a freguesia; comecei a juntar material — mas não fazendo música. E quando vou a ver já tinha um conceito feito.”
© Renato Cruz Santos
David Bruno em palco com Rui Reininho
Perguntamos-lhe se é um repentista e dado a improvisos no que toca às letras. Responde que é “um repentista com pré-preparação”. “O que é que eu quero dizer? Quando ando a fazer música, passo muito tempo a pensar sobre o assunto sem concretizar; vou tomando muitas notas, vou pensando… Uma coisa que faço muito é falar sozinho em casa; eu falo muito sozinho, em voz alta. Muitas vezes estou a pôr as ideias no sítio, estás a ver? E tomo nota e deixo passar. No dia seguinte, volto ao assunto.”
Com a música que faz, que é, essencialmente, à base de samples, passa-se o mesmo. “Antes de compor, só junto os samples e tenho uma ideia, mas não vou logo partir pedra. E, depois, quando chega a altura em que tenho as minhas coisas juntas, e acho que está na altura de começar a criar, aí, de facto, sou repentista, mas só porque andei muito tempo a pensar no assunto.”
Antes de pensar na letra ou na música, David conta que pensa no “quadro grande" e "no estilo” que quer imprimir ao seu projeto artístico. “Depois vêm as referências musicais que acho que se enquadram no espírito [da história] que quero contar, porque eu não tenho propriamente um estilo musical definido. Vou ouvir músicas e começo a juntar samples dentro daquele estilo, e começo a juntar pequenas maquetes; depois é que começo a pensar em letras que se enquadram naquele universo, até ao dia em que me sento a escrever e até sai rápido [por causa de todo o trabalho que está para trás].”
Depois de ter feito um dueto com Rui Reininho, “um mega ídolo”, o músico desfia alguns nomes com quem, também, gostava de cantar – e confessa já ter levado “tampas” de alguns, mas não diz de quem. “Gostava de fazer uma música com o Sandro G., que acho que é uma pessoa honesta no que faz; com o Boss AC; com o Guto, que fazia parte dos Black Company; e com o TT.
Fascinado por sítios e pessoas, este contador de histórias interessa-se mais por paisagens interiores do que exteriores: “Acho que nunca fui visitar um sítio por causa das paisagens, o que trago sempre são as histórias das pessoas. Eu gosto de pessoas. Gosto de falar com pessoas. E gosto de sítios e de perceber a cultura das pessoas.”
Todas as suas canções são histórias que se focam, em grande parte, naquilo a que chamamos cultura popular portuguesa ou portugalidade, e que as gerações mais jovens procuram, de alguma forma, recuperar e valorizar. “Acho que há um gap geracional nisto da portugalidade, ou o que lhe quiseres chamar. Os nossos avós sempre foram ‘muito portugueses’. E, apesar de todas as mudanças, continuaram a ter ‘hábitos tugões’. Isso mudou um pouco com a geração dos meus pais, acho... Com o êxodo das pessoas das aldeias para as cidades, foram-se perdendo os sotaques, fizeram questão de perder os sotaques dos sítios de onde vieram, e todos quiseram modernizar-se. Mas agora a nova geração começa a dar valor e a readquirir esses tais hábitos, e a frequentar outra vez, por exemplo, um determinado tipo de restaurantes, e têm orgulho de ser portugueses.”
O músico sublinha, contudo, que é preciso não confundir portugalidade com nacionalismo e xenofobia: “Acho que hoje há um risco quando as pessoas dizem que têm orgulho de ser portuguesas [e não sabemos a que se referem]; tens orgulho de ser português porque gostas da nossa cultura, ou tens orgulho de ser português porque está cá gente a mais e há muita imigração e os outros são merda e nós é que somos bons?” – E, a propósito, refere que já lhe sugeriram fazer canções com letras anti-imigração. “Isto é muito perigoso.”
“O fenómeno que acho mais engraçado na minha música é a malta de Lisboa que acha o sotaque e os sítios que descrevo muito exóticos. Esse público tem uma ideia que, às vezes, não corresponde nada à realidade [que estou a retratar], mas ainda bem!, assim é arte, é aberta à interpretação”, frisa, acrescentando que “é muito interessante ver o pessoal de Lisboa com uma ideia muito exótica do que Gaia poderá ser graças à minha música”.
E se há quem diga que os subúrbios são “a pior invenção da humanidade”, para David Bruno viver lá é estar no seu elemento. “Os subúrbios são como os cães rafeiros: um processo de muitos anos da lei do mais forte, em que foram acontecendo lá muitas coisas, foram morando para lá muitas pessoas diferentes. Há muitas pessoas que vão morar para esse tipo de ambiente, não se adaptam e vão embora; há outras que se habituam. Há pessoas que já estavam lá, que eram agricultores, e não se importam [com a chegada de novos moradores]. Há pessoas que abrem fábricas lá no meio — ainda por cima, em Gaia podes fazer uma fábrica ao lado de um campo de batatas… É esta mescla, este melting pot, que acho muito interessante.”
E exemplifica: “Em Vilar do Paraíso, há uns tempos, estava a passar por um campo de ovelhas, que ainda há muitas pessoas que criam gado, e em frente ao campo das ovelhas estava estacionado um Porsche Panamera de um senhor que morava na casa ao lado e que parece um chalé suíço. Isto é muito forte. Eu gosto muito desta mescla. Acho que isto é diversidade. Vês de tudo. E é fixe andares numa rua que não é ‘formatada’, em que vês pessoas com os mesmos estilos, os mesmos tipos de negócio. Ali, tens de tudo num metro quadrado.”
"É muito interessante ver o pessoal de Lisboa com uma ideia muito exótica do que Gaia poderá ser graças à minha música.”
Os concertos que considera “mais especiais” e que “guarda mais na memória” não são necessariamente “os maiores”, mas, sim, aqueles que aconteceram “em sítios especiais, que têm que ver com o contexto” da música que faz. E aponta, neste sentido, o primeiro concerto em nome próprio, de apresentação de O Último Tango em Mafamude, que aconteceu “num shopping abandonado, daqueles com galerias, que há por baixo dos prédios”. “Foi no Centro Comercial Vila Gaia, que está cheio de lojas fechadas. Aluguei o antigo escritório de um empreiteiro, que era enorme; tinha uma sala de formação e fiz lá um concerto que foi mesmo muito especial para mim.”
O músico recorda, ainda, o concerto de apresentação – que não foi bem um concerto – do álbum Santa Rita Life Style de Conjunto Corona, que "é sobre tuning e a rotunda de Santa Rita”. “Juntámo-nos, metemos a música a tocar no carro na bomba de gasolina, e o pessoal do tuning começou a fazer piões na rotunda. Se tivéssemos pagado, não podia ser melhor. Se tivesse um espetáculo num coliseu ou noutro sítio, tinhas de pagar uma fortuna para poder trazer às pessoas aquela realidade. É realismo.”
Questionado sobre o local onde gostaria de dar um dos seus próximos concertos, afirma, sem hesitações: “Gostava de tocar num shopping a sério; no Arrábida Shopping, por exemplo.”
por Gina Macedo
© Renato Cruz Santos
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