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Comer, ação que nos é inata. Triunfo dos sentidos num ato puro de partilha e de deleite, desbloqueador de memórias com sabor. Comer resume-se, afinal, a esse espaço de conservação de experiências, à transmissão primária e (in)consciente de amor.
Para Francisca Camelo, poetisa, diseuse e feminista, o dia começa com o pequeno-almoço, “a refeição mais importante do dia”. "E o que dizer do trabalho feito para que se pudesse chegar ao momento quase-ritual do pequeno-almoço posto na mesa, fresco, vaporoso, pronto a ser devorado?” Atrás de uma mesa posta, há sempre alguém que a preparou. Neste espaço de memória ecoam, de quando em vez, os registos da sua infância, o sabor das torradas com manteiga feitas pela sua mãe e o cheiro a cevada que se sentia ao entrar na cozinha. Recordação que revela em A Importância do Pequeno-Almoço, onde agradece à sua mãe por todos os pequenos-almoços. A esse propósito, refere a letra da canção popular “Maçadeiras do Meu Linho”: Ó minha mãe dos trabalhos / para quem trabalho eu? / Trabalho mato meu corpo / não tenho nada de meu.
Este livro de poesia aborda memórias, mas, sobretudo, “fala da invisibilidade do trabalho doméstico e da teoria da reprodução social sobre uma perspetiva feminista”, conta. Através da poesia, Francisca questiona o lugar atual da mulher na sociedade: todas aquelas tarefas que são normalmente atribuídas às figuras femininas, como levar e ir buscar as crianças à escola, dar-lhes de comer e vesti-las, comprar a comida, fazer as refeições e lavar a loiça, “tudo isso faz parte desse trabalho invisível que faz com que o mundo continue a girar e a funcionar”, justifica.
O mundo de Francisca Camelo não funciona sem comida, nem funciona sem a abundância de palavras ‘cozinhadas’, por isso não é de estranhar que no seu roteiro para comer poesia no Porto constem espaços repletos de memórias onde as palavras são servidas e degustadas. "Tens a Casa Odara, um sítio onde eu própria organizo algumas sessões de poesia; é um espaço que, à semelhança do café onde estamos, o Dona Mira, é gerido por brasileiros. Ambos decidiram transformar os espaços em sítios que absorvessem atividades culturais. Gosto muito do Pipa Velha; não se fazem necessariamente sessões de poesia, mas é um sítio onde se encontra muita gente já dessas andanças. Acabamos por nos encontrar sem querer ou de propósito para conversar sobre essas temáticas. Tens, obviamente, o Pinguim, que acho que é inseparável da história literária do Porto.”
Na sua memória gustativa permanece a cevada, mas substituiu-a pelo café. “Quando eu penso no Porto, eu penso no café [bebida e espaço], o Porto é uma cidade de cafés; ainda é pequena o suficiente para haver um encontro, e onde o café pode ainda não custar dois euros." Na verdade, Francisca sente-se bem nos cafés de bairro e o mais provável é que a vejam na confeitaria em frente à sua casa “a comer uma torrada e a beber um café”. Entre cafés, livros e poesia, Francisca Camelo vai continuar a dar-nos poesia para comer e a dar voz às mulheres que, diariamente, põem o pão, o café e a fruta em cima da mesa, para que jamais permaneçam invisíveis quando partilham o coração logo na primeira refeição do dia.
Por Maria Bastos
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