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Conjugar o Porto
Falar com as mãos com Cláudia Rubim
Entrevistas
15 de novembro é o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa, uma das três línguas oficiais de Portugal. Para assinalar a data, a Agenda Porto esteve à conversa com Cláudia Rubim, tradutora e intérprete de Língua Gestual Portuguesa (LGP).
Conjugar Claudia Rubim

Novembro 2025

Já a devem ter visto no canto inferior direito do vosso ecrã. Natural de Massarelos, Cláudia aparece frequentemente em noticiários da RTP, mas nunca no centro do enquadramento. Na televisão, na sala de aula, em salas de espetáculo e noutros contextos, as mãos desta intérprete de LGP desenham no ar aquilo que o som não consegue “dizer”.

Quando Cláudia terminou o 12.º ano tinha o sonho de ser terapeuta da fala, mas não conseguiu logo ingressar no ensino superior. Inscreveu-se, por isso, num programa de voluntariado, do Instituto Português da Juventude, no Instituto Araújo Porto, onde “crianças surdas faziam o ensino primário”. “Eu estava com os miúdos nas aulas, nos intervalos, e comecei a aprender língua gestual com eles.” Foi nessa altura que, diz, lhe ficou “o bichinho”. 


Depois deste trabalho de voluntariado, que durou cerca de dois anos, Cláudia licenciou-se em Psicopedagogia. “Não tirei logo o curso de Tradução e Interpretação de LGP porque gostava de ajudar pessoas com dificuldades de aprendizagem, que também é uma característica de alguns surdos”, conta. Mais tarde, quando terminou essa licenciatura, entrou na Escola Superior de Educação (ESE) do Porto “porque queria mesmo ser intérprete de língua gestual”. Depois de terminar a licenciatura, Cláudia ficou a dar aulas na ESE a futuros intérpretes de LGP e, quatro anos depois, começou a trabalhar no meio escolar com alunos surdos – hoje acompanha, como intérprete, alunos surdos do Agrupamento de Escolas Dr. João de Araújo Correia, no Peso da Régua.

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Cláudia Rubim © Rui Meireles

“LGP é falar com as mãos e com o corpo. Tudo é comunicação.”

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© Teresa Oliveira

“É importante distinguir intérpretes e docentes de LGP. Neste momento, sou intérprete na Régua. Eu não ensino a língua, e as pessoas que ensinam não traduzem. No contexto educativo, por vezes, são papéis que se confundem; complementam-se, mas são diferentes”, elucida. 


“Desde 2008, existem no país as chamadas escolas de referência que, se os pais assim entenderem, proporcionam o ensino bilingue aos alunos surdos”, esclarece Cláudia. “Os alunos aprendem a língua gestual em contexto escolar com professores, porque a maioria dos surdos nasce em famílias ouvintes, e os pais não dominam a LGP; portanto, eles têm a possibilidade de aprender a língua gestual desde pequeninos, desde a pré-escola.”

Normalmente, os intérpretes acompanham os alunos surdos do 5.º até ao 12.º ano de escolaridade. “É quando o aluno já tem um domínio maior da língua, que só se adquire em convívio com os colegas e em aprendizagem em contexto escolar. A partir daí, conseguimos traduzir uma aula; portanto, eu estou numa aula ao lado de um professor, em frente aos alunos surdos, e estou constantemente a fazer esta mediação de comunicação”, explica.

Foi a 15 de novembro de 1997 que a LGP foi reconhecida pela Constituição da República Portuguesa. Segundo a intérprete, “a luta dos surdos por este reconhecimento também ajudou a que a sua profissão começasse a ter outro peso”, frisando que “é um meio de acesso e de igualdade de oportunidades à comunidade surda”.

Cláudia considera que foi aquando da pandemia de covid-19 que o papel do intérprete de LGP começou a ser “mais destacado”, nomeadamente nas conferências de imprensa promovidas pelo Ministério da Saúde. “Ainda me lembro de estar em casa e de amigos surdos ligarem por videochamada a pedir que ligasse para a Linha de Saúde 24 para fazer a mediação com o enfermeiro, porque na altura nem se pensou nos surdos. Conseguiu-se, a partir daí, que o SNS 24 tenha sempre um intérprete de LGP para fazer a mediação, e as pessoas surdas podem ligar por videochamada”, conta, satisfeita.

A língua gestual não é universal
Ao contrário do que muitos ouvintes ainda acreditam, a língua gestual não é universal; cada país tem uma língua gestual própria. “Uma língua é associada a uma cultura. Eu sou portuguesa, falo português. Sou intérprete de LGP porque a comunidade surda para quem trabalho é a comunidade surda de Portugal”. A propósito, Cláudia indica o gestuário SpreadTheSign, onde é possível comparar as línguas gestuais de diferentes países.


Também existem regionalismos na LGP
Questionada pela Agenda Porto, Cláudia confirma que há regionalismos na LGP. “Sente-se mais entre o norte e o sul, tal como nós dizemos ‘café’ ou ‘bica’.” A intérprete exemplifica com a diferença no gesto da palavra “voluntário” no Porto e em Lisboa [vê o vídeo abaixo]. “Também é um desafio para nós como intérpretes, porque para traduzir um surdo que vem de Lisboa, tenho de conhecer aquele gesto, mas acho que estas diferenças é que tornam a LGP ainda mais rica. Além de ser bela, porque as mãos e o corpo podem transmitir tudo”, vinca.

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Cláudia Rubim nas Quintas de Leitura © João Octávio Peixoto /TMP

Dar palco à inclusão

Cada vez mais companhias artísticas e salas de espetáculo têm vindo a adotar práticas inclusivas, como o serviço de tradução e interpretação de LGP. “Sinto que não só na televisão como nos espetáculos de teatro e nos espetáculos musicais, também, se começa a pensar mais na comunidade surda, que começa a participar mais nos eventos, porque de facto percebem que há algo que pode ajudar a compreender a mensagem”, afirma Cláudia, que tem assumido o papel de tradutora e intérprete em vários espetáculos culturais da cidade, como é o caso das Quintas de Leitura.


No entanto, e apesar das melhorias no que respeita à acessibilidade na fruição cultural, ainda há um longo caminho a percorrer. “Nem sempre a nossa posição em palco é a melhor; isso também tem de ser trabalhado porque, se calhar, nós, intérpretes, devíamos estar desde o início na conceção da peça para percebermos que espaço deveríamos ocupar; não é só dizer que há ali o intérprete no cantinho, ou então, como já me aconteceu, colocarem-me em baixo do palco”, lamenta. E acrescenta: “não sei se podemos considerar isso uma verdadeira inclusão, porque o surdo tem de dividir a atenção, e se está a olhar para o cantinho onde está o intérprete, está a perder alguma situação, algum movimento, alguma cena.” Nestas situações, apesar de haver um intérprete de LGP, “a verdadeira inclusão e a verdadeira acessibilidade são questionáveis”.


Em contraponto, já participou em espetáculos “em que está no meio, junto das personagens, e para o surdo é muito mais fácil, porque a dispersão visual é menor”. E, a propósito, evoca o “trabalho fantástico” da companhia Terra Amarela, de Marco Paiva, “que faz uma coisa que outros teatros deviam fazer: incluir atores surdos nos espetáculos”. “Isso faz toda a diferença, até para chamar o público surdo aos espetáculos.”

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Cláudia Rubim no espetáculo "O Poema só existe no espaço onde há Luz", d'O Som do Algodão, 2022 © Teresa Oliveira

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Cláudia Rubim no espetáculo "O Poema só existe no espaço onde há Luz", 2022 © Teresa Oliveira

Enquanto intérprete, Cláudia penetra num mundo silencioso, transformando sons em gestos e traduzindo não só o que é dito, mas o que é sentido. Para fazer este trabalho, garante, é preciso “uma grande preparação prévia, em casa”. “Quando é, por exemplo, um espetáculo de teatro, o guião é-nos cedido antecipadamente e temos de o preparar, de digerir aquela linguagem. E temos de fazer um esforço por passar os sentimentos dos atores, por passar as sensações – e não é só os gestos que contam; é a nossa expressão corporal, a nossa expressão facial.”


Os intérpretes de LGP acabam por ter espaço para a criatividade e a expressão pessoal em contextos artísticos. “Já me aconteceu aqui, no Porto, o ator vir-me buscar e incluir-me na peça. Eu não estava a contar até, mas senti que tinha também de improvisar naquele momento, de deixar um bocadinho de mim”.

Como um dos momentos “mais marcantes” enquanto intérprete em espetáculos culturais, aponta o concerto de Passagem de Ano, promovido pelo município, na Avenida dos Aliados, em que teve “o privilégio” de traduzir o Rui Veloso, “com uma praça cheia”. “Foi um desafio grande e gostei imenso.”

A intérprete frisa, ainda, que “todas as peças de teatro são sempre um desafio”. “Principalmente, quando são de grandes dramaturgos, que também exigem de nós muita pesquisa, para percebermos qual é o melhor gesto para traduzir aquela expressão, aquele sentimento, aquela palavra.”


E, a propósito, refere que em LGP não há gestos para todas as palavras. “Acontece-me, quando faço televisão, dizerem-me que ‘demorei um bocadinho mais’, mas como não existem gestos para todas as palavras, naquele momento, numa fração de segundos, tenho de utilizar vários gestos para explicar um conceito”, conta, exemplificando com a palavra “eutanásia".


“Mesmo nos espetáculos, tenho de fazer esta preparação prévia, porque se não tenho um gesto para determinada palavra, tenho de arranjar uma série de gestos, ou dar a volta ao contexto, para conseguir que a mensagem passe da forma mais fiel possível.”

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Cláudia Rubim nas Quintas de Leitura © João Octávio Peixoto /TMP

Sobre o futuro da LGP, a intérprete defende que “devia ser aprendida por mais gente”. “Todos nós devíamos saber um bocadinho de LGP, especialmente nas escolas de referência, porque numa escola onde há surdos a aprender juntamente com ouvintes, devias ter como disciplina de opção a LGP, como tens o inglês, o francês ou o espanhol”, sustenta. Neste sentido, refere que algumas escolas do país, como é o caso de Viseu, têm a LGP como disciplina opcional para os alunos ouvintes. Para Cláudia, continua a faltar “acessibilidade e mais trabalho com a própria comunidade surda”.

Sabia que?...

É errado dizer “surdo-mudo”: a palavra ‘mudo’ era utilizada para caracterizar as pessoas surdas como 'incapazes'. "Neste momento, 'o problema' das pessoas surdas é terem uma comunicação diferente; utilizam uma forma de expressão manual e uma forma de aquisição da comunicação visual. Portanto, é insultuoso utilizarmos esse termo.”

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