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É quinta-feira à tarde na Praça da Batalha. Por entre as buzinas do trânsito que negoceia uma faixa de circulação única, e acima das discussões por vezes entusiasmadas de quem faz uso dos bancos da Praça, ouvem-se arpejos quentes de sintetizador e uma voz que canta um amor sofrido. A música vem das janelas abertas da sede do Orfeão do Porto, onde têm ainda lugar bailes semanais — últimos sobreviventes do que noutros tempos foi um roteiro de bailes um pouco por toda a cidade.
Para os habituais da Batalha, esta música oferecida à rua não é surpresa — dir-se-ia que é, até, esperada, e apreciada, por quem gosta de ouvir sem ter de arriscar um pé de dança — mas os turistas que por ali se passeiam procuram, com curiosidade, a fonte destes apontamentos latinos que emanam de um edifício rodeado por hotéis.
“Há relações que começam nestes bailes, mesmo entre as idades mais avançadas. Até já tivemos alguns casamentos!”
Em 2024, o Orfeão cumpre 114 anos de existência continuada, tendo sido fundado em 1910, ano de implantação da República. Plácido Martins, presidente da direção há mais de vinte anos, propõe com orgulho o título de “Orfeão mais antigo com atividade continuada”, uma subtileza que permite ultrapassar a idade do Orfeão de Coimbra, que viu a sua atividade suspensa por uns anos. A relação de Plácido com o Orfeão começou, como tantos dos seus membros, apenas após a reforma. Sem a ocupação dos dias pelo emprego, e com filhos a viver a sua própria vida, viu no Orfeão um projeto de atividade útil, mas também de convívio.
Algo que partilha com quem comparece às matinés das quintas e domingos: “Os bailes são uma terapia física, pela dança, mas também psicológica, porque é útil na socialização, no contacto com outras pessoas”. Um contacto que pode até vir a tornar-se profundo: “há relações que começam nestes bailes, mesmo entre as idades mais avançadas. Até já tivemos alguns casamentos!”.
© Rui Meireles
Carminda, 81, e Adelino, 86, são um exemplo destes casais outonais. Ambos viúvos, seguiam em vias paralelas nos bailes, indo um aos domingos e outro às quintas-feiras. Até que, há quatro meses, se deu a coincidência de se cruzarem na mesma tarde, e a relação começou logo ali. Carminda afiança com orgulho que são “um casal apaixonado, e apaixonante”, e diz serem “a inveja de muitos aqui”. Ao lado, José e Luzia afirmam-se como apenas amigos — mas José acrescenta que há “amizades sem maldade, mas com muita malícia”. Trocado por miúdos: “toda a gente gosta de carinho”.
© Rui Meireles
Esta nova encarnação das tardes dançantes do Orfeão foi iniciada já nos anos 2000, mas a sua época de ouro aconteceu nos anos 60 e 70. As associações culturais e recreativas eram, bairro a bairro, onde famílias e grupos de amigos se encontravam num modelo participativo e colaborativo. Então, o Orfeão contava com um Grupo de Teatro, para além do Grupo Coral e do Grupo Etnográfico, e a entrada para os bailes era restrita a quem obedecesse a um dress code rigoroso. Hoje, a entrada é mais livre, pode-se entrar mesmo de sapatilhas, desde que não se apresentem embriagados e paguem o bilhete.
© Rui Meireles
Ainda assim, o bilhete não é cobrado a curiosos, como no caso dos turistas que entram por ali dentro e tentam perceber que festa é esta, mesmo sem sinais na rua convidando a entrar. “Eu digo-lhes: take a look, take a look! Ainda a semana passada tivemos aqui um grupo de irlandeses que estavam encantados com o espaço, beberam uns copos e dançaram, animaram muito o baile”, conta Plácido.
Estes bailes são neste momento a maior fonte de receita do Orfeão, que atravessa uma situação sensível, devido à possibilidade de aumento da renda do espaço que ocupa desde os anos 70. Os senhorios pretendem subir a renda para quatro vezes o seu valor atual. O estatuto de instituição de utilidade pública e a integração no programa Porto de Tradição deram-lhe alguns mecanismos para conter esta alteração, estando neste momento em tribunal a decisão final. Mas mesmo que a renda “apenas” duplique, o Orfeão terá de encontrar uma nova casa. “Teríamos de ir para a periferia, o que iria tornar muito difícil aos nossos associados continuarem a comparecer para os ensaios e para os espetáculos. Se não ganharmos esta ação, será o fim do Orfeão.”
© Rui Meireles
Ricardo Alves
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