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Antes de ser livraria, a Cassandra era a sala de ensaios das produções de teatro da sua equipa. Essas produções, sempre fruto de um profundo mergulho bibliográfico, vinham acompanhadas de uma lista de livros quer serviam de referência, ou de “toma aconselhada”, para quem queria mais imersão nos temas da peça. Antes de ser livraria, a Cassandra foi também o seio de onde brotaram as Heróides – clube do livro feminista, com sessões ambulatórias entre o digital e o espaço físico. Portanto, antes de ser livraria, a Cassandra já morava nos seus livros. Fomos falar com a equipa para conhecer o espaço que celebra agora um ano de atividade.
A atriz e encenadora Sara Barros Leitão assume a direção artística de uma estrutura que conta, também, com Simone Almeida como coordenadora de produção (temporariamente em substituição de Susana Ferreira), Mariana Dixe na comunicação e Lau Robert na produção. É com este grupo que conversamos sobre de onde vem, e ao que vem, o espaço da Cassandra – na Avenida de Camilo, mesmo em frente ao liceu Alexandre Herculano. Sara Barros Leitão remete para o perfil das produções de teatro da Cassandra como originador deste foco na palavra encadernada. “Como não fazemos teatro de repertório, acabamos por escrever todos os nossos textos, o que nos leva a grandes processos de investigação. As nossas salas de ensaio estão sempre repletas de livros”.
Nesse contexto, Mariana Dixe relembra como o espetáculo Guião para um país possível foi “a primeira experiência de livraria”. Esta peça, escrita com base nos registos dos debates na Assembleia da República, levou a que decidissem, segundo Mariana, “pedir às editoras os livros que tínhamos usado no processo de pesquisa, e com eles montámos uma banca na estreia da peça em Viana do Castelo, junto a cópias dos diários da Assembleia da República”.

Simone Almeida, Lau Robert, Sara Barros Leitão e Mariana Dixe © Rui Meireles
Esta experiência repetiu-se aquando do quarto ano de digressão da peça “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa”, e Mariana conta como “as pessoas se começaram a entusiasmar com as duas, três ou quatro caixas de livros que levávamos para os espetáculos”. “Mesmo quem pertencia ao clube do livro, às Heróides, tinha interesse em fazer mais leituras do que apenas o livro mensal do clube”.
O espaço que agora ocupam, encontrado há dois anos, foi “o conjunto perfeito”, uma vez que possui não apenas uma generosa sala de ensaios, mas também algo há muito pretendido: uma zona de escritórios para o trabalho da equipa. Esse espaço de escritório beneficia de ser contíguo à sala de ensaios – Simone está “atenta ao que vai sendo dito durante os ensaios, e volta e meia vai lá confirmar os detalhes de produção de que vão precisar”.
Esta sala de ensaios, partilhada com outras companhias de teatro da cidade, é também o espaço que recebe toda a amplitude de programação da Cassandra: há conversas, oficinas, lançamentos de livros, e sessões de cinema. Embora muita desta programação seja promovida pela Cassandra, fazem acolhimento de iniciativas externas, desde que alinhadas com os valores da estrutura.

© Rui Meireles
Nesta dinamização do espaço floresce uma sinergia com a livraria. Lau Robert dá como exemplo o lançamento de um livro infantil, “que levou a Mariana a fazer um expositor com livros do seu catálogo que poderiam interessar a esse tipo de público”. Além disso, quem se relaciona com o espaço e o visita vai deixando as suas recomendações, acrescentando-as ao catálogo, que também contempla secções dedicadas aos livros que informaram as peças de teatro da Cassandra e às obras selecionadas nas Heróides.
Sara Barros Leitão salienta uma dimensão recentemente adicionada, a de alfarrabistas: “as pessoas vinham perguntar-nos se aceitávamos livros em segunda mão, e acabámos por criar toda uma nova secção – sendo que fazemos uma triagem daqueles que estão alinhados com a nossa curadoria, enquanto os restantes deixamos no passeio, numa cestinha de fruta, para quem os quiser simplesmente pegar e levar”.

© Rui Meireles
Esta seleção criteriosa (e carinhosa) permite à equipa ter um conhecimento íntimo do catálogo que chega agora ao milhar de títulos. “Mil títulos já é muita coisa, e até tentamos resistir à lógica das grandes superfícies de grande rotação no catálogo – por vezes, é possível encontrar novidades mesmo dentro do catálogo que já temos, algo que nos possa ter passado despercebido”, refere Mariana.

© Rui Meireles
Esta lógica torna possível dar um aconselhamento mais próximo e, a propósito, Sara relembra um caso em que “um cliente veio pedir a sugestão de um livro para oferecer à mãe”, e elas começaram a conversa pedindo-lhe para descrever a sua mãe. “É um desafio que nos agrada, que é tentar perceber quem é aquela pessoa, o que ela procura e que livros é que podemos recomendar. E depois até sugerimos livros que não temos, e a pessoa muitas vezes espera que os encomendemos”.
Esse é um modelo que, mais do que inovador, se remete para uma tradição livreira entretanto perdida, segundo Sara Barros Leitão. “À medida que as grandes livrarias começam a ter eletrodomésticos e a vender uma série de outras coisas, é normal que as pessoas sejam menos especializadas a vender tudo aquilo, não é? Porque tu não consegues vender uma Bimby, um livro e tudo o resto”.
Este engajamento enquadra-se numa "politização dos cuidados”, sendo que Sara considera estas “duas vertentes indissociáveis”. “É a nossa forma de estar no mundo, de ver as coisas”. Algo que Lau Robert se voluntaria a confirmar, uma vez que “foi muito fácil escolher onde fazer o seu estágio, porque queria escolher um sítio que tivesse presente o cuidado da não-precarização das pessoas trabalhadoras”. “Infelizmente há poucos sítios que o fazem bem, como aqui”, lamenta.

© Rui Meireles
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