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Entrevista de perfil
Carlos Milhazes e a Matéria Prima
Entrevistas
Casos sérios de amor à música
Carlos Milhazes e a Matéria Prima

Com cerca de três décadas e meia de atividade, a Matéria Prima é a mais antiga loja de discos da cidade do Porto, fundada por Paulo Vinhas, Miguel Sá e Jorge Pereira. No site podemos ler que tem como missão “tornar acessíveis a um público mais amplo, os artistas, músicos e editores mais inovadores, experimentais e aventureiros”. Demos um salto à rua de Miguel Bombarda para conhecer este espaço feito de discos, livros, revistas e zines (“ingenuamente, continuamos a acreditar em todos os suportes analógicos, material impresso e outras esquisitices”, dizem eles), e para nos encontrarmos com Carlos Milhazes, colaborador antigo, para uma conversa à volta da música.  

A Matéria Prima, que já teve morada numa cave na mesma rua, é agora uma loja ampla, “simpática e arejada” e muito visitada por turistas, mas que continua a ser uma espécie de local de culto aonde vão os aficionados da música mais “obscura” e mais distante do chamado mainstream. É o sítio ideal para quem gosta de explorar novos universos sonoros. Como o próprio Carlos Milhazes. Natural da Póvoa de Varzim, veio estudar muito jovem para a Escola Soares dos Reis, e foi durante a segunda semana de aulas que descobriu a Matéria Prima, acontecimento que terá, talvez, mudado o rumo da sua vida. “Percebi que não queria ir às aulas”, atira, a rir. Tornou-se freguês assíduo; passava lá tanto tempo à volta dos discos e das cassetes e a conversar com o funcionário da altura que, num certo verão, acabou por rendê-lo durante o período de férias. Agora, diz, em tom de brincadeira, que é ali que “ganha e gasta o salário”. 


Além dos colecionadores e interessados em géneros musicais muito específicos, “há um nicho de pessoas que são genuinamente curiosas e que querem conhecer música nova — e não são propriamente uma elite cultural e económica”, conta-nos. E acrescenta: “Lutamos mesmo muito para contrariar a ideia de que somos uma loja feita para as elites, ou de que é uma loja de nicho, mas considerando as editoras independentes e os géneros musicais, acho que isso é uma coisa que se sente sempre.” 

Carlos Milhazes e a Matéria Prima

Carlos Milhazes © Guilherme Costa Oliveira

Carlos Milhazes e a Matéria Prima

© Guilherme Costa Oliveira

Millhazes admite que os seus “clientes favoritos” são as pessoas que “estão pouco familiarizadas com estes géneros musicais, mas têm muita curiosidade em conhecer”. “Acho que é necessário ter espírito de curiosidade para consumir o tipo de coisas que vendemos”, vinca. Este melómano observa, no entanto, que “aquilo que é considerado ‘música estranha’, ‘música marginal’, ‘música popular’ são separações que vêm muito do hábito e da familiaridade que se tem com os sons”. “A maior parte das coisas que vendemos são bastante acessíveis ao ouvido e bastante fáceis de escutar”, defende.  


Neste sentido, refere que gosta de mostrar às pessoas “alguma coisa diferente de que possam gostar”. “Isto vale para as pessoas que estão habituadas a ouvir música pop comercial e, se calhar, tento recomendar-lhes coisas que têm essa matriz pop, mas que já fogem ligeiramente; e vale para as pessoas que vêm de um espaço mais singular e mais particular de um artista que se calhar não pode ocupar um espaço na pop comercial, porque não é vendável para as massas, mas que continua a ser bastante interessante”, conta. “Aos que tentam reservar o seu gosto para a música menos acessível, que tem esse gosto um pouco mais isolado e ‘egoísta’, gosto de tentar provocá-los no sentido de gostarem de coisas de que toda a gente gosta e que são genuinamente boas”, remata.  

Vinil e cassete: nenhum formato esteve “fora de moda”


Nos últimos anos, o vinil tem vindo a conquistar novos adeptos e tem vindo a ganhar peso nas vendas totais de música em todo o mundo. Perguntamos se há uma certa fetichização à volta do objeto, que parece ter voltado a estar na moda. Milhazes afirma que “para as pessoas que consomem estes géneros de música, nunca nenhum formato deixou de estar na moda — mesmo as cassetes, que eram formatos que tinham bastantes vantagens, e uma delas era o preço e o acesso que as pequenas editoras tinham às fábricas de produção”. Segundo ele, agora “é bastante difícil” para os editores independentes terem meios para pagar os custos da produção, que “aumentaram consideravelmente”.

E exemplifica: “Há seis anos, uma cassete ficava abaixo de um euro; hoje, anda à volta de cinco, seis euros. Sempre senti que as cassetes eram um formato entusiasmante para os editores independentes, que faziam uma edição de 50 ou 100 cópias e depois vendiam em concertos com margens bastante consideráveis. Hoje, para fazer sentido produzir uma cassete, tem de ser vendida por 15€, e depois ninguém compra”, lamenta. O mesmo se passa com o preço dos vinis, com um LP a rondar os 40 euros. “As matérias-primas estão muito mais caras, e eu sinto que os pequenos editores já começam a perder interesse nestes formatos e procuram outras soluções; se calhar, apostam na edição digital e produzem merchandising, para terem algum tipo de objeto físico à venda nos concertos, em vez de cassetes, vinis e CDs.”  


Milhazes lamenta que os formatos analógicos estejam a tornar-se “pouco democráticos”. “Estes formatos continuaram a existir precisamente porque eram democráticos, porque era acessível e fácil a um editor independente ou a um músico fazer uma edição privada”, conclui.  

Carlos Milhazes e a Matéria Prima

© Guilherme Costa Oliveira

Carlos Milhazes e a Matéria Prima

© Guilherme Costa Oliveira

O ressurgimento da LAMA, a editora que nasceu por amizade


Apesar dos constrangimentos que editar discos possa representar para as pequenas editoras de música, aventurou-se na área e, com o primeiro salário da Matéria Prima, fundou a LAMA, uma editora onde lançou “música portuguesa, exploratória, dançável”. Teve como parceiro desta aventura o amigo Luca Massolin, um melómano italiano que vive no Porto há mais de década e meia e é DJ, colecionador de vinis, dono da loja de discos 8mm Records e o responsável pela seleção dos discos no espaço Fiasco, ambos no Bonfim. Juntos, fizeram quatro edições e suspenderam a editora, que será reativada ainda este ano. Quando surgiu, estava “mais orientada para experimentações dentro da música de dança”, diz Milhazes, que faz questão de referir que se sente “sempre relutante” em usar a palavra experimentar — “muitas vezes é mal interpretada, eu não gosto do entendimento da cultura como sendo uma coisa para as elites”.


A LAMA acabou por surgir “sem grande intenção”. As duas primeiras edições foram feitas com músicos nacionais e, também, em nome da amizade. Um amigo tinha composto alguns temas que seriam editados pela XL Recordings, a editora independente britânica, mas viu as expectativas logradas. Milhazes, como gostava da música, chegou-se à frente e decidiu editar ele. Foi essa edição que viria a definir o rumo da LAMA, “para não entrar por espectros musicais muito diferentes e para manter alguma consistência”. Mas não lhe interessava particularmente aquele género musical e, diz, “aborreceu-se”. Agora, a editora vai enveredar por outros caminhos sonoros: “As coisas novas obedecem mais ou menos ao mesmo espírito, mas estão mais próximas dos géneros consequentes da diáspora caribenha em Inglaterra; vamos editar um duo inglês e um músico francês”, revela.  

"O culto que existe à volta do DJ faz-me muita confusão”


Não é apenas ao balcão da Matéria Prima que Milhazes passa muitas horas à volta de rodelas de vinil. Enquanto Dj Dealy partilha de vez em quando as cabines de vários espaços com amigos — embora cada vez com menos frequência. Diz que “não gosta de protagonismo”. “Deixei de passar música à noite porque me incomodava esse protagonismo que é oferecido ao DJ, o culto que existe à volta faz-me muita confusão”, desabafa. “Passo música nos meus termos, e procuro que as famílias que têm crianças possam aparecer e sentirem-se confortáveis, e que a música não esteja associada a um contexto de vício, que é naturalmente o contexto da noite — e sem mal nenhum nisso”, acrescenta. “Às vezes, os vícios que me incomodam mais até são os sociais, e a música está sempre num plano que já nem é secundário”, explica.  


Com alguns amigos (como Pedro Abrantes e Valdemar Pereira, o duo de GAM/Coletivo Vandalismo), organiza eventos “mais ou menos espontâneos”, ao domingo, que é o seu dia de folga. A divulgação dos eventos é feita, informalmente, através das redes sociais pessoais. “Queríamos selecionar música sem todas as limitações que advém de passar música à noite, mas também acontecia muitas vezes músicos e DJs internacionais mandarem mensagem a dizer que vinham ao Porto e que queriam fazer algo cá”, conta. “Tentamos criar uma relação positiva para ambos os lados, com quem nos tiver disposto a receber; normalmente, são associações desportivas, pequenos negócios que tenham pátios ou espaços ao ar livre”, conta. O Túnel e o Musas são alguns dos sítios onde têm repetido estes eventos.   


Milhazes afirma, ainda, que evita “a imposição sobranceira” de quem passa música nos circuitos mais alternativos da noite, “quando os DJs se acham educadores”. “Eu tenho muito respeito pelas pessoas que vão sair à noite e que passaram a semana toda a trabalhar e que depois ao fim de semana só querem relaxar e socializar. Eu tenho respeito por isso; simplesmente, sentia que, muitas vezes, estava eu, sem querer, a impor, porque mesmo tentando fazer uma seleção [de música] que considerava ser mais democrática, as pessoas continuavam a ter bastante resistência àquilo que estava a acontecer, então eu sentia que lhes estava a impor uma coisa, e isso era a última coisa que eu queria sentir”, conta.  

Concertos: “O Porto é uma cidade incrível” 


Milhazes elogia a cena musical do Porto e afirma que, atendendo à sua dimensão, “é uma cidade incrível”, apontando o Hotelier como um bom exemplo de espaço que arrisca trazer músicos e géneros pouco conhecidos do público. “Vou ao Hotelier e estão 50 pessoas a assistir a um concerto de um músico que depois vai tocar ao Cafe OTO, em Londres, que é ‘a grande sala’ para este universo musical na Europa, e tem entre 100 e 150 espectadores. À escala e à percentagem da população, não estamos nada mal; na verdade, estamos muito bem!”, sustenta. Não será por acaso que também ele, de vez em quando, faz curadoria de concertos no Hotelier — “com menos regularidade do que aquilo que queria”. Mas é imparcial ao afirmar que “é um dos espaços mais bonitos e importantes da cidade”. “A forma como as coisas acontecem lá, com um desapego a pretensões e a cânones, é mesmo bonita”, vinca. “Às vezes, vou a concertos no Hotelier de que não gosto particularmente e nunca em nenhum deles senti que estou a perder o meu tempo; e aquilo nunca perde exigência, curiosamente.” Neste sentido, defende que “é fundamental para qualquer espaço cultural preservar uma identidade e uma linguagem [culturais] sem desvalorizar as outras, mas percebendo que as outras têm de acontecer noutros espaços”. “Os espaços para serem sólidos, para conseguirem uma confiança do público têm de respeitar uma expectativa”, sublinha. E acrescenta: “Quem vai ao Hotelier tem a expectativa de ver um concerto de um artista que se calhar nem conhece assim tão bem, mas que sabe que, na pior das hipóteses, vai ser agradável o suficiente para tirar uma soneca, e que vai comer um bom prato de comida cozinhado pela Paula no final do concerto.” 

Carlos Milhazes e a Matéria Prima

© Guilherme Costa Oliveira

Carlos Milhazes e a Matéria Prima

© Guilherme Costa Oliveira

Uma galeria de arte chamada Branda 


Formado em cinema, admite que “quando era miúdo, era uma paixão ainda maior do que a música”. Apesar de a música ser a sua ocupação principal, continua a dedicar muito tempo à sétima arte (é, também, membro da Comissão de Seleção da Competição Transmission do festival Porto/Post/Doc), à literatura e às artes plásticas. “Vou conseguindo ocupar a minha vida com todos os meus interesses”, conta. Neste sentido, em abril, juntamente com o amigo Francisco Oliveira, criou a Branda, uma galeria de arte que pretende dar visibilidade a artistas emergentes. “A Branda é a cave do Fiasco, se bem que evito explicar a galeria como sendo ‘a cave de um bar’, porque acho que isso lhe retira alguma responsabilidade, e nós sentimos bastante responsabilidade”, sublinha.  O espaço inaugurou com uma exposição da artista Letícia Costelha e, entretanto, também já foi a casa de um ciclo de cinema do Médio Oriente com curadoria de Francis de Assis e Saif Fradj. Desde final de setembro, está patente ao público a exposição “Um salto no espelho”, de João Melo.

por Gina Macedo

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